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Sem Rede

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

Sem Rede

17
Dez09

Tempo de reflexão

Redes

Tomou hoje posse uma nova direcção no Agrupamento de Escolas de Santo Onofre que foi eleita pela grande maioria dos membros do Conselho Geral Transitório. Como professor desta escola pertencente à minoria que se sente derrotada, cumpre-me felicitar o Sr. Director e a sua equipa, e desejar-lhe sucesso na espinhosa tarefa de dirigir a escolarização de muitos jovens, para quem os próximos anos serão marcos singulares das suas vidas e não apenas experiências educativas de maior ou menor sucesso.

O conselho que elegeu o novo director foi eleito com uma única lista de sete docentes, para a qual não apareceu rival, facto que, mesmo no contexto da chamada “gestão democrática das escolas" não constitui novidade – o Conselho Executivo demitido pela DREL também fora eleito por uma única lista concorrente. A novidade está no carácter indirecto da eleição que colocou o acto eleitoral ao abrigo do julgamento pessoal de autarcas, encarregados de educação, professores e funcionários. Ficou tudo nas mãos dum conselho composto por 21 membros.

A verdade é que muitos professores, alérgicos ao processo eleitoral do CGT por causa da solidariedade com o executivo apeado, não participaram no acto que elegeu os seus representantes. Mas também não foram tantos que impedissem um muito honroso resultado para a lista de professores concorrentes, com uma quantidade impressionante de votos favoráveis. Parece evidente que muitos professores concluíram que era chegada a altura de regularizar a situação das escolas de Santo Onofre.

A presidente do conselho executivo cessante, com quem me solidarizo, concorreu também e perdeu estrondosamente (2 contra 15). O fracasso em conseguir os votos do CGT, deveria levar a uma reflexão por parte da candidata e dos seus apoiantes. A tentação para teorias da conspiração ou acusações de fraude eleitoral deve ser afastada para que se cogite sobre os erros próprios. Pois se aquelas são boa solução para salvaguardar o amor próprio, são estes que nos permitem avançar e prepararmo-nos para outras situações similares. Eu quero contribuir com a minha modesta parte, como sempre num salto “sem rede”.

O conselho executivo cessante teve um grande mérito que temos que lhe reconhecer: não pode ser acusado de ter militado em defesa de interesses pessoais, pois os factos desta história evidenciam que caso os seus membros o tivessem desejado poderiam ter sucedido a si próprios, quer como CAP quer como candidatos ao cargo de “Director”. Porque não aproveitaram essas oportunidades? A CAP foi imposta pela DREL exactamente por causa da sua recusa.

O Conselho Executivo sentia que a maioria dos professores - diríamos todos se a História não tivesse vindo desmentir-nos - achava que o executivo, fiel ao mandato que recebera dos seus pares, não se devia tornar “direcção” no novo modelo de gestão, cuja implementação parecia ser condição do calendário do nefasto sistema de avaliação.

Há aqui dois erros que quero assinalar. O primeiro tem a ver com os apoios. Em reuniões, onde aparentemente se discutiam abertamente os assuntos, imperava uma "maioria silenciosa" que não manifestava opinião nenhuma. Nem lhe era dado apresentá-la. Perante minorias militantes com caras que se apresentam como gurus seguros do movimento, ninguém ou quase ninguém se atreve a apresentar um ponto de vista divergente. A maior parte das pessoas não tem mesmo opinião formada e aceita o rumo das coisas para "ver o que é que dá". Ora em nenhuma dessas reuniões foi feita a votação formal de uma ou mais moções que definisse o caminho a seguir. Nem teria de... - dir-me-ão. Nem teria de... - concordo eu. Mas essa seria a única maneira de comprometer todos com uma posição. Perante a energia das minorias activas, ficou o conselho executivo com a ideia de que tinha o "povo" consigo, mas não o tinha.

O voto secreto é a arma da "maioria silenciosa". Por ele, nunca se fazem revoluções. Quanto a mim, ainda bem. Os líderes democráticos têm que temperar as suas opções pelo sentir das maiorias. Na TV, vemos manifestações impressionantes feitas por minorias que não têm o apoio declarado da maioria dos seus concidadãos, mas oferecem aos seus líderes a ilusão do apoio do povo.

O segundo erro tem a ver com a interpretação de que o calendário da avaliação dependia da implementação do novo modelo de gestão, com uma ordem que se supôs implicar um CGT, um um novo regulamento e a eleição do director. Não vou entrar em pormenores de discussão jurídica, que não me interessam muito, mas já vi interpretações diferentes, que dissociam completamente as duas leis.

Eu, pessoalmente, sou uma ovelha obediente, que aceita a luta de massas dirigida nacionalmente pelas organizações sindicais que nos representam. Se a lei de gestão das escolas mudou, temos que eleger os nossos dirigentes de acordo com ela. Se não concordamos com ela, fazemos manifestações, influímos nos nossos partidos, mas esta é uma questão nacional e não local.

No que respeita à avaliação, houve uma directiva sindical a nível nacional, a que aderi, que consistia em não entregar os objectivos. Tinha a perfeita consciência de que os custos e os riscos eram meus e dos milhares que procediam como eu. Ora, lembro-me que numa dessas reuniões, os professores que não queriam aderir a esta forma de luta manifestaram preocupação quanto à entrega dos seus objectivos e à sequência da sua avaliação...

A partir do momento em que há um grupo de professores disposto a participar no Conselho Geral Transitório, a estratégia tácita que os professores da escola seguiam ficou ferida de morte. Na altura, chamei a atenção para o facto. Nem podemos acusar ninguém. A mudança de posição foi antecipada e abertamente expressa e os procedimentos de criação da lista foram límpidos. Já tive ocasião de adjectivar positivamente a pessoa que liderou a lista para o Conslho Geral Transitório. Leio nos comentários dos blogues processos de intenção como se dum lado houvesse só interesses pessoais mesquinhos e do outro só grandeza e nobreza. Há interesse pessoal e nobreza quanto baste, tanto num lado como no outro.

Quer me parecer que o resultado desta dinâmica foi a radicalização e a divisão entre colegas, os que estão solidários com o executivo cessante e os que estão do lado da CAP e do Conselho Geral Transitório. Ora isto não é verdade à partida, mas pode ter-se tornado tal por se ter afirmado tão peremptoriamente ao nível das relações pessoais. Não terá esse mal-estar peturbado a nossa candidata quando se apresentou ao CGT?

08
Dez09

Ana e a árvore da vida (4)

Redes

Prefácio

Este texto não tem outra intenção que não seja a de concretizar numa história uma parte da narrativa de Génesis. Repare-se que no aspecto ficcional a história de Adão e Eva e de Caim e Abel é muito lacunar. São parcas e contraditórias as informações sobre ambientes e personagens. 

Não tento corrigir os factos históricos porque tal não é possível. Aceito os elementos que constituem esse mundo ficcional, mas tenho que me socorrer de informação histórica apenas para imaginar como seria a vida daquelas personagens. Ana é uma filha mais nova de Adão. (ele teve um grande número de filhos e filhas). A longevidade das personagens - novecentos e trinta anos para Adão - é um dos dados que é aceite. Apenas se fazem opções quando se torna difícil concretizar um certo aspecto. Aproveito as contradições para introduzir outros elementos míticos exteriores a Génesis e inventar soluções.  

É escusado estar aqui a discutir a verdade destes factos. É o mesmo que questionar a existência dos Elfos na Terra Média de Tolkien. Todos sabemos que os seres humanos nunca viveram tanto tempo. Tubal-Caim não poderia ter inventado instrumentos em cobre e em ferro, pois temos provas de que entre o início da idade do cobre e a do ferro distam cerca de dois mil anos. 

Génesis diz-nos pouco sobre o que sentiam as personagens sobre os acontecimentos. Mas um elemento recorrente é a descrença e a inclinação para o desvio. Essa falta de fé de quem viveu de tão perto o encontro com o divino é em si próprio um sintoma de falta de evidência. 

Aqui trata-se de fazer não uma história obediente mas uma história que se questiona a si própria.

Episódio 1 - Filha de Eva (se ainda não o leu, clique aqui)

Episódio 2 - A visita de Henoch (se ainda não o leu, clique aqui)

Episódio 3 - O Éden revisitado (se ainda não o leu, clique aqui)

Episódio 4 - Enoque

 

Ana sabia vagamente que o caminho para a Terra de Nod, onde estava o seu irmão Caim, seria para este e para sul. Enoque era banhada por dois rios que ligavam o Tigre ao Eufrates. Pensou que lhe bastaria seguir o curso do rio Eufrates para lá chegar, indo sempre na direcção do Sol quando está no seu ponto mais alto. Mas estava já muito cansada e hesitava entre voltar para casa e fazer mais uma viagem arriscada. Como uma parte do percurso seria igual,  pôs-se a andar, adiando a decisão.
Após alguns dias de marcha, atingiu o Eufrates e lá se quedou num lugar aprazível, onde não faltava água límpida nem árvores de fruto. Passou dias assim, a ganhar forças para se decidir: voltaria a enfrentar o deserto para ir para casa ou lançar-se-ia para sul. Um dia, pela madrugada, decidiu-se. Já nada havia a fazer no que se refere à árvore da vida, mas a curiosidade em relação à história de Lilith conduzia-a a mais uma aventura.
Era uma caminhada dolorosa lado a lado com o Eufrates, embora nem água nem frutos lhe faltassem.
À medida que avançava para sul, as aldeias tornavam-se maiores e mais frequentes. Por vezes, encontrava homens nos trabalhos agrícolas e pedia para ajudar em troca de alimentos. Isso ocupava-a por um ou dois dias e permitia-lhe um generoso abastecimento.
Admirava-se da quantidade de casas que as aldeias tinham. Perante estas, as da sua região pareciam ridiculamente pequenas, pois eram aldeias feitas de casas com um aspecto provisório, já que lá, muitos pastores deslocavam-se durante uma parte do ano à procura de bons pastos. Aqui, à medida que se aproximava duma dessas grandes aldeias, via, cobrindo a suave elevação, uma intrincada rede de telhados de madeira e junco, muros de tijolos, janelas e escadas encostadas nos muros. Era difícil distinguir onde acabava uma e começava outra casa, tão juntas e apertadas.
Beneficiou da hospitalidade duma família duma dessas aldeias, uns dias de descanso, comida paga com trabalho doméstico e agrícola. Ana estava maravilhada com o que via. Os instrumentos e artefactos eram muito mais eficientes, mais diversificados e de melhor acabamento do que o que tinha em casa. Tudo o que era de barro era decorado e era muito plano e liso. Os instrumentos de pedra e de osso eram mais finos e precisos.
Todos queriam saber quem ela era e, como era comum as pessoas localizarem-se numa longa genealogia de 10 a 15 gerações, ficavam surpreendidos quando Ana se limitava a dizer "Ana, filha de Adão". "Bem, de Adão, consta que somos todos, mas quem é o teu pai", "Adão", insistia Ana, "Sim, Adão, filho de quem?", "Ele? Não tem pai. Foi feito à imagem e semelhança de Deus" e a conversa continuava até aceitarem que ela era a irmã dos velhos e famosos Seth e Caim.
Passados alguns dias, pôs-se de novo a caminho. A meio-dia de marcha da aldeia parou para comer e descansar. Adormeceu sob a sombra de uma frondosa árvore. A meio do sono, acordou sobressaltada com um peso enorme em cima. "Está quieta, agora tu és minha!". "Deixa-me! Quem és tu?"  O volumoso agressor tapou-lhe a boca enquanto tentava a todo o custo, fazer caminho para o corpo dela que se mantinha fechado, as pernas cruzadas. Enquanto se debatia, Ana ouviu uns passos muito rápidos, o ruído de folhas e pauzinhos secos de Outono a partirem-se numa cadência muito rápida, o corpulento homem a levantar-se de imediato e a cair logo de seguida, atravessado por uma forte lança de cobre. O bando de homens de onde a lança proviera aproximava-se a correr. O que vinha à frente tinha um vistoso elmo de cobre e todos os outros traziam longas adagas também de cobre nas mãos.
Assim que chegou ao pé de Ana, o homem deu-lhe a mão para a erguer do chão. "Há algum tempo que perseguíamos este degenerado. Sou Tubal-Caim, filho de Adão, Caim, Enoque, seus descendentes, para abreviar, e, por fim, de Lameque. Sei que tu és Ana, irmã do nosso venerado Caim. Ele sabe que tu vens para cá". "Como soube?". "Os chefes das aldeias comunicam uns com os outros e com a sua cidade sagrada que é Enoque. Temos códigos para comunicar através de corneta e do tambor".
Era um grupo grande, de algumas centenas de homens, todos fortemente armados, não com cajados de pastor, nem com lanças de pau com ponta de obsidiana, mas sim com fortes e coesas armas de metal, arcos e flechas, elmos, lanças, adagas e escudos. Eram todos ágeis e musculados e olhavam com muita reverência para Tubal-Caim como se ele fosse um deus.

Levaram Ana numa espécie de liteira transportada por quatro homens. "Já caminhaste muito até aqui. Agora estás por nossa conta", disse Tubal. Andaram três dias até as muralhas de Enoque aparecerem ao longe. Ana estava verdadeiramente deliciada com os mimos com que era tratada na caravana de Tubal. Dormira quase todo o caminho. Os homens tratavam de tudo, da comida e das tendas e das coisas do acampamento quando paravam para dormir e descansar. Ana sentia que ela e Tubal eram quase como deuses para os jovens do exército de Enoque, principalmente quando souberam que Ana era filha do lendário Adão.

Atravessaram uma pontezinha sobre o rio que circundava Enoque e entraram nas portas da cidade. Sobre as muralhas de uma altura que ultrapassava a de 8 homens encavalitados uns sobre os outros, Ana viu guerreiros armados de sentinela que andavam de um lado para o outro.

Conduziram-na ao Palácio. Na sala do trono, estava o velho Enoque que recebia uma multidão de homens das aldeias. Todos traziam ovelhas, bois e vegetais, que eram dádivas para o Patési Enoque e para os templos. "É o dia do tributo. Acabaram as colheitas."," explicou Tubal. O que é um templo?", inquiriu Ana. "É a casa dos deuses e das deusas." "Há vários?", perguntou Ana. "Há muitos, mas nós só veneramos dois, o Deus Criador e a sua esposa". "Então ele tem uma esposa?", "Sim, senão como podia ter filhos?", respondeu Tubal. "Em criança, Adão disse-me que havia só um deus que é o Senhor. Os outros não serão anjos?", "Anjos, deuses e demónios, alguns bons outros muito maus. Num templo mora o Senhor, como tu dizes, no outro, mora a sua mulher". Nesse momento, Ana lembrou-se de Lilith e perguntou a Tubal sobre ela. "A mulher que nunca envelhece? Ela vive no templo da Deusa".

Uma zona do palácio estava destinada a Caim que estava muito velho e quase sempre recolhido. A descendência de Caim vivia num bairro de casas mais pequenas à volta do Palácio. Apenas a família real propriamente dita habitava o Palácio. Embora a faímília de Tubal, os pais e os avós vivessem nas redondezas, ele vivia lá porque era considerado um provável herdeiro do Patési, devido à sua enorme popularidade como guerreiro e como inventor de instrumentos em metal.

Caim foi efusivo na recepção a Ana. "A minha maninha mais nova! Então e o mais velho? Sei que ele não me quer ver. Por isso, nunca lá fui como Seth e os outros fazem"  Ana deu-lhe todas as informações sobre o envelhecimento difícil de Adão.

"Foi um homem que se julgou eterno. Eu, pelo contrário, bem digo a morte. Sei que ela está para breve e é uma amiga que me vem buscar".

Enquanto conversavam, Ana  não conseguia tirar os olhos da marca que ele ostentava na testa. "Tornou-se maior do que era" - explicou Caim - "espalhou-se pela testa toda". Via-se um centro bem definido e uma zona de  penumbra cada vez mais ténue até se esbater no tom da própria pele.

"Deixar-me viver foi o castigo de Deus. Se o acuso, é de não me ter matado antes de eu ter morto o meu irmão. Não é ele Senhor dos raios e das tempestades? Então porque não fez que um raio caísse em cima de mim? A verdade é que Ele chega sempre tarde, quando já não há nada a fazer. Onde está a sua famosa omnisciência?".

"Como foi esse encontro com Deus?", perguntou Ana. "Foi apenas a voz dele que se zangou comigo e me pôs a marca na testa" - explicou Caim, como já lhe tinha dito Adão. "Aqui não O adoram. não é? Adoram outros deuses", disse Ana na expectativa de ouvir a opinião de Caim.

"Dão-lhe outro nome. Nenhum deles teve um contacto directo com Ele, por isso, têm que imaginá-Lo à sua maneira e com as palavras que têm à mão", "Mas adoram também uma deusa, a mulher Dele", "Ninguém me disse que Deus não tem uma esposa. Se não é o caso, porque não vem Ele próprio cá abaixo para nos esclarecer? Porque é que só aparece a algumas pessoas que escolhe quase sempre pelas piores razões? Já muita gente fez crimes piores do que o meu. Porque é que ele só aparece a mim? Olhem Lameque que se ufana de ter morto gente pelas razões mais insignificantes e diz que será perdoado por Deus, como eu fui. Não o fez, que se saiba, aqui na cidade. Senão seria castigado pela justiça dos homens que é menos caprichosa que a divina".

Ana procurara debalde a mulher de Caim. Não lhe tinha sido mostrada nenhuma. Não sabia como havia de colocar o tópico. "O teu filho Enoque também já está velho. Quem é a mãe dele?"

Caim mostrou-se incomodado com a pergunta, mas respondeu: "Percebo o que queres saber. Lilith é a mãe dele. Ela foi a minha primeira mulher, mas depois, eu e o meu filho começámos a envelhecer e ela mantinha-se sempre jovem. Um dia desapareceu e eu arranjei outra esposa, a que acrescentei outras que já morreram. Eu não sabia da história dela com Adão, do que dizem dela, não sei se é verdade se é mentira. Desde, então, ela mudou-se para o templo. Muitos crentes confudem-na com a própria deusa. Amam-na e temem-na ao mesmo tempo. Raramente a vêem, mas quando ela aparece, é um acontecimento. É uma jovem extremamente bela, mãe de um velho rei".

"Quando chegaste à Terra de Nod, não havia ninguém?" "Eram só Lilith e os seus numerosos filhos, mas não tinha homem junto dela. Eu vinha furioso, triste, zangado comigo, com Deus e com os homens e foi ela que me recebeu, deu-me um lar e um começo de vida. Estive muitos anos com ela. Ajudou-me a construir esta cidade". "Nunca quiseste saber de quem eram os filhos dela?". "Não. Eram jovens e crianças extremamente belas". Parte da população de Enoque descende deles."

Uns dias depois, Ana resolveu ir ao templo. Apresentava-se agora de maneira diferente. A roupa de lã, rude, que trazia, a saia comprida e o xaile, fora substituída por um vestido de uma lão muito mais fina profusamente decorado. Trazia colares e pulseiras de ouro que os ourives do Palácio lhe deram. Na rua, todos os que a viam lhe faziam saudações respeitosas. Fora divulgado pelos soldados que ela era irmã do senhor Caim e filha de Adão. À entrada da rampa que dava acesso ao templo, os numerosos fiéis baixavam-se e faziam-lhe uma vénia, abrindo-lhe caminho.

Decorria uma cerimónia em que os casais que desejavam ter filhos eram abençoados pela Deusa. Quando Ana entrou, viu as pessoas a tocarem em Lilith como se ela fosse a própria Deusa. Lilith, a jovem eterna, mãe de reis, parecia a própria divindade. Assim que viu Ana, Lilith apressou-se no ritual despachando os numerosos crentes.

Dirigu-se a ela sorrindo: "Então tu é que és a famosa filha de Adão e Eva". Convidou-a a comer para conversarem. "Então o que te leva a fazer uma tão longa viagem?" "Tu és o motivo!", respondeu Ana. Lilith não se admirou. "Por onde andaste, Ana?", perguntou-lhe com um ar muito penerante como se estivesse a tentar ler-lhe no rosto a resposta. "Andei pelo Éden...", disse Ana, sustendo o olhar de Lilith, fitando-a com firmeza na expectativa do efeito do esclarecimento.

"Mas esse jardim decadente ainda existe?". "Sim. nâo me pareceu nada de especial. As nossas searas na Primavera são mais bonitas", "Não está lá ninguém para cuidar dele e os próprios deuses o abandonaram, não é? Deixei esse jardim muito antes deles, como já deves saber", "Deuses?", "Ou anjos ou demónios, é tudo a mesma coisa", retorquiu Lilith.

"Mas voltaste lá, não é verdade?", "Muitas vezes e ainda quando eles lá estavam", acrescentou Lilith com um ar de malícia.

"Estiveste com Adão às escondidas de Eva? E tiveste filhos dele?", "E não só dele... Mas tive-os fora do jardim. Éden para mim era uma prisão, por isso, fugi de lá".

"Foram anjos caídos os teus amantes, não é verdade?", "Foram só dois. Escolheram tornar-se humanos para me amarem". "E assim conseguias entrar e sair do Éden... E assim conseguiste comer do fruto da árvore da vida", "Vejo que estás bem informada", "Estive com Haziel, o guardião da espada flamejante", "Pobre Haziel... Agora já sabes porque sou uma deusa. O fruto fez-me igual a eles. Este corpo é um empréstimo, tanto estou nele como fora e não sirvo para outra coisa senão para povoar os sonhos dos homens. Se não morro, também não vivo com o prazer que tinha antes. Se os anjos que decaem em humanos conquistam o prazer da carne, nós os que ascendemos, perdemo-lo", riu-se tristemente.

Ana ganhou empatia com Lilith. Sentia-se mais como sua irmã do que como oponente. Sentiu pena da perda de Lilith, uma mulher cheia de juventude, beleza e força, mas sem desejo nem satisfação. "Foi por isso que deixaste Caim?", "Sim, deixei de desejá-lo ou de desejar qualquer um, sou um corpo sem desejo, sem ser anjo nem humano", "Porque não és anjo?", "O Senhor não me aceita como um dos dele, atira-me para o Outro. Sim, Lúcifer, o anjo desobediente, mas eu não quero nada com ele. Decidi que vou ser a Deusa da mulher", "Por isso, estás aqui no templo". "Sim, inspiro todas as mulheres, a lembrarem-se de que não são filhas da costela de Adão, mas, pelo contrário, é Adão que é filho delas. Eu fui a primeira, mas o Senhor não ficou contente comigo por eu ser demasiado independente e fez Eva de uma costela do homem. Filha de uma costela, coitada! A minha vingança é esta: por onde quer que O adorem, dêm-Lhe o nome que derem, eu lembrarei os povos de que tem de haver uma mãe de Deus ou uma esposa Sua e eles adorá-la-ão e é a mim, a mulher feita Deusa, que eles estarão a adorar, dêm-lhe o nome que derem, Innana, Hera, Maria ou Ísis". Enquanto dizia isto, toda ela brilhava com um ar ameaçador e a sua imagem desfazia-se para voltar a tomar corpo e regressar ao aspecto saudável da sempre jovem Lilith.

Ana não percebia muito do que Lilith dizia, mas reconhecia-lhe razão. Se os anjos só desejavam ser homens e não mulheres, pelo menos, havia um deus que continuava a ser Mulher. Era mais justo.

Lilith, agora em carne e osso, com todas as faculdades que a faziam mulher perante os outros, olhou com um ar preocupado para o exterior. "É noite. Vou mandar preparar um quarto para ti. Não vais agora andar aí à noite até ao Palácio. Boa noite, querida. Eles levam-te a ceia e tudo o que precisares".

Os criados deixaram-na num magnífico quarto que nada ficava a dever ao que tinha no Palácio. O encontro com Lilith enchera-lhe a cabeça ainda de mais perguntas do que as respostas que recebera, mas estas tinham-lhe também por fim dado uma certa tranquilidade. Dava graças ao Senhor, por não ter conseguido obter o fruto da árvore da vida. Seria como uma segunda maldição para o pobre Adão. Primeiro, Eva, agora seria ela a infernizar-lhe a vida. Sorriu ao pensar "é para isso que nós servimos para criar intranquilidade e insatisfação nos deuses e nos homens" Com este pensamento, aconchegou-se e adormeceu.

A meio da noite, ouviu o ranger da porta. Olhou e viu um vulto que de repente ficou todo iluminado como se tivesse luz própria. Reconheceu-o. Era Haziel, agora nu e sem as asas de anjo, que vinha na sua direcção.

"Ana, resisti a Lilith, mas não resisto a ti. Deixa-me amar-te". "Haziel? Que fazes aqui?", "Tenho-te seguido por todo o lado. Deixa-me ser homem ao pé de ti", "Mas tu queres ser uma anjo caído? Queres ser mortal?", "Não sabes o que é viver apenas com o desejo do desejo. Só por ti caio e morro, Ana".

Haziel deitou-se ao seu lado. Ana afastou-se e declarou: "Não resistiria se avançasses, tão belo és, mas por favor não o faças, amo um homem chamado Dan que me espera muito longe daqui". Haziel, contudo, abraçou-a docemente e Ana estava a deixar-se levar, embora recusando quase a chorar, "Por favor, Haziel..."

Quando Haziel aproximou os lábios do seu rosto, Ana ouviu um barulho de passos apressados e na porta entreaberta apareceu um homem forte de longas barbas cinzentas. Haziel e Ana ergueram-se de sobressalto e gritaram em uníssono: Henoch!"

"Haziel sai daqui! Não ouviste a Ana dizer que ama o meu filho Dan?"  Haziel levantou-se e saiu porta fora. "Como chegaste aqui?", inquiriu Ana a Henoch. "Ana, eu estou no meu leito a dormir como tu. Foi o Senhor que me deu este poder de entrar nos sonhos daqueles que amo. Os filhos de Deus quando se perdem pelas filhas dos homens, entram nos sonhos delas. Se o aceitasses, ele apareceria ao teu lado de carne e osso quando acordasses. Aproveito para te dizer que o teu pai morreu há um mês e que o meu filho partiu já há algum tempo para Enoque, para ir ter contigo. Sei que tenho apenas cerca de mais cinquenta anos convosco. Depois, o Senhor tomar-me-á para si. Quero vos deixar a todos bem na vida. Agora, acorda um pouco Ana, abre os olhos e depois volta a dormir um sono repousante". Ana assim fez. Saiu ao pátio e olhou para o céu. Uma bela lua cheia! "Que pesadelo, este!", pensou.

No dia seguinte de manhã, Ana comeu na companhia muito humana de Lilith e despediu-se dela. No Palácio, não se falava de outra coisa: "a morte de Adão, o pai do senhor Caim". A notícia chegara através de viajantes e pela sequência de toques de tambores e cornetas. Sabia-se que vinha aí Dan, o filho do patriarca Henoch.

Uma semana depois, chegava Dan. Ana atirou-se aos abraços dele assim que o viu. Contou-lhe todas as suas avnturas e desventuras sem lhe omitir nada. Dan concluiu: "Este mundo dos deuses é deveras estranho. Agora que Adão morreu, todos sabemos que temos uma vida para viver e que a eternidade tem um preço demasiado alto. Por isso, vamos viver o que há para viver e não paguemos ao Senhor mais do que nos é exigido". E ali ficaram a viver, em Enoque, onde começara a aventura da civilização.

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