Não pretendo fazer uma crítica teatral da peça que recomendo a todos os títulos no que diz respeito ao valor do espetáculo, atores com brilhante desempenho, belo cenário e um texto com alguns aspetos muito interessantes e outros que me deixam interrogações e suscitam estas reflexões. Advirto que, quando analiso estes enunciados, não pressuponho que a peça os defende, mas apenas que eles ganham alguma preponderância para o espetador (eu) e o interpelam e, por isso, aqui os comento.
Matar o homem
Na peça, introduz-se a diferença entre homem e mulher à luz do paradigma atual que faz do género uma possível opção e não uma fatalidade ditada ao nascimento, como se essa diferença trouxesse alguma compreensão às memórias de um partcipante na guerra colonial. Que em todos os humanos há masculinidade e feminilidade é uma ideia antiga. Veja-se Pierre Daco, As mulheres, um livro de há várias décadas que aborda a diferença entre homem e mulher numa perspetiva psicanalítica, e que, corrigindo o complexo de castração de Freud, afirma precisamente isso, a masculinidade que existe nas mulheres e a feminilidade que existe nos homens.
Simplesmente, não vejo qualquer evidência de que a mudança de paradigma no poder, do masculino para o feminino, envolvendo queers, trans ou mulheres altere em alguma coisa o exercício da guerra. E, sobretudo, não podemos identificar na guerra colonial, um lado agressor masculino e outro defensivo, feminino. Talvez possamos reconhecer uma masculinidade predominante na gesta heróica dos conquistadores e dominadores, mas nada impede que esse discurso mude e integre homens e mulheres (e outros...) em papéis muito parecidos. Basta dar uma olhada em séries atuais que integram mulheres bem femininas em papéis igualmente violentos. De resto, as mulheres sempre estiveram no poder, por detrás dos homens a exigir-lhes demonstrações de masculinidade e quando o exerceram efetivamente não foram propriamente meigas (Isabel I, de Inglaterra, Maria a sangrenta, Catarina II, da Rússia, Margaret Thatcher, Golda Meir, Benazir Bhuto, Aung San Suu Kyi, etc.). Veja-se nesta última, apesar de ter sido vítima dos militares, a sua atuação a propósito dos rohingyas.
Parece-me impossível matar o homem e errado colocar na testosterona a culpa de todos os males da humanidade, tanto mais que esta hormona, tal como outras, são essenciais tanto a homens como a mulheres.
Guerra colonial versus guerra de libertação
No jogo do reverso, em que o mesmo facto é visto de maneira diferente, como no exemplo de "penetração" versus "circlusão", uma palavra inventada no contexto das questões de género, aqui também uma personagem contrapõe ao termo "guerra colonial", o de "guerra de libertação", apesar do lado contrário nesta guerra estar ausente. A este propósito, importa lembrar que "guerra colonial" era um termo da Oposição. O discurso oficial dizia que não havia colonialismo na África portuguesa e que se fazia uma guerra contra o terrorismo nas províncias portuguesas do ultramar. Trata-se pois de dois conceitos complementares e não opostos em nenhuma perspetiva. Curiosamente, nesta página, dedicada ao livro de Joaquim Penim, No planalto dos Macondes, a guerra é designada de acordo com a perspetiva do regime do Estado Novo: "guerra do Ultramar" e não guerra colonial, um termo, então, proibido.
Casa Portuguesa
Sobre "Casa portuguesa" de Reinaldo Ferreira, é justo lembrar que a questão da independência de Moçambique não estava ainda em discussão na praça pública, como veio a acontecer alguns anos depois da sua morte (1959), aos 37 anos. Ele desempenhou o cargo de chefe de posto da administração colonial de Moçambique. Tanto "Casa Portuguesa" como "Kanimambo" são obras encomendadas, coisas menores na poesia de Reinaldo Ferreira que os críticos consideram de elevada relevância na Literatura Portuguesa e que outros reivindicam como parte da Literatura Moçambicana.
É preciso acrescentar o juízo literário de que constrastar a "Casa Portuguesa" que evoca uma falsa tradição lusa com a sua origem ultramarina e ligar essa oposição à memória da guerra, trazendo-a para dentro de casa, por assim dizer, é um ponto alto do texto da peça. Digamos que é a memória da guerra a metaforizar as contradições da família, com a figura paternal em ruínas e os papéis tradicionais, mascuninos e femininos, a serem contestados.
Um poema de Reinaldo sobre "herói".
Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
Matar negros
Sujeito ao interrogatório do neto, o ex-furriel responde que esteve numa guerra com tudo o que ela implica. Infere-se que terá morto negros como seria inevitável, pois os adversários seriam isso. Posto que além de mortos em combate de ambos os lados e massacres de populações, alguns dos quais, noticiados, como o de Wiriamu, a pergunta é intrinsecamente racista, pois sabemos que havia muitos negros a combater do lado português, e também destes, foram muitos os mortos causados pelos adversários. A questão sugere que havia uma guerra entre pretos e brancos o que é uma caricatura deplorável. De novo, o lado ausente das memórias da guerra aparece só como vítima em contradição com a reivindicação do termo Guerra de Libertação.
O império de "Minho a Timor"
É um dos mais ridicularizados enunciados do discurso colonial português. Para o Estado Novo de Salazar, no Ato Colonial de 1930, o Império era constituído por colónias. Nestas, os habitantes negros não eram cidadãos de pleno direito, mas, apenas, "indígenas". Só obtinham direitos de ser "assimilados" os que tivessem êxito num exame de cultura e língua portuguesa. Só tinham cidadania sem quaisquer aspas os portugueses originários. Diz-nos Adriano Moreira que, quando foi introduzido o enunciado "de Minho a Timor", se referia a brancos, portugueses que viviam em Portugal e nas colónias e não a toda a população. Na década de 60, o estatuto do indigenato acabou e todos passaram a ser considerados portugueses. Os territórios já eram designados como "províncias" desde 1951 e todos os vocábulos com étimo colonial desapareceram, mas na realidade efetivamente vivida, as relações entre "portugueses" brancos e negros não tinham sofrido uma alteração equivalente à do léxico.
Este estado de coisas foi contestado, primeiro por militantes da oposição que se opunham ao colonialismo e à ditadura e, depois, pelos movimentos de libertação nacional.
Como vejo as guerras de libertação nacional
Para evitar equívocos sobre a minha posição, esclareço que, para mim, a luta armada por parte da FRELIMO, do MPLA (assim como da UNITA e da FLNA) e do PAIGC foi a única solução para que as elites africanas tomassem os destinos dos seus países contra um governo que mantinha um status quo colonial já ultrapassado, à revelia das decisões da ONU, e que se recusava a dar aos habitantes das colónias o que fora concedido pacificamente e sem problemas pelas outras potências europeias na maior parte dos países africanos.