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"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

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23
Out04

Que manuais escolares de língua portuguesa?

Redes
Maria do Carmo Vieira, que no ano passado, pôs em questão um manual escolar, por incluir o regulamento do “Big Brother”, voltou este ano à luta, ao se escandalizar por os manuais do 9º ano trazerem Os Lusíadas “censurados”, sem os episódios do Velho do Restelo e da Ilha dos Amores.

Segundo o Expresso desta semana (23/10/2004), a professora atribui o problema aos programas e não às editoras. Os programas estão alicerçados sobre o conceito de tipo de texto. Por isso mesmo, os Sermões do Padre António Vieira, aparecem classificados como textos argumentativos. Ora nesse sentido, o texto literário, como o demonstraram muitos teóricos da literatura, não é um tipo de texto, pois a literarieade não tem características linguísticas e formais determinadas. Se hoje em dia, lemos os Sermões é por causa da sua excelência literária e não por causa dos argumentos expostos. Claro que é um texto bom para se estudar os recursos argumentativos que a língua oferece e a habilidade da oratória, mas isso é uma outra questão.

Como muito bem mostrou Victor Aguiar e Silva, na sua Teoria da Literatura, a literarieade é dada pela pertença dum texto a um dado sistema semiótico literário. Assim, vários textos que foram escritos no âmbito da religião, do direito ou da historiografia, são hoje lidos, pelos seus valores estéticos e não pelos seus valores religioso, jurídico ou historiográfico. Um exemplo disso é a Crónica da Conquista de Lisboa de Fernão Lopes que tem leituras diversas, consoante estejamos no âmbito da Língua Portuguesa ou no da História de Portugal.

A literatura tem assim um valor histórico que vai integrando tudo o que se considera de excelência na produção escrita. Vai construindo um cânone. A questão é: qual deve ser o critério de selecção de textos, o cânone da literatura portuguesa, ou uma dada tipologia de ordem linguística e pragmática, cujas características interessa que os alunos dominem?

Como a Maria do Carmo Vieira critica esse aspecto dos programas oficiais de Língua Portuguesa, parece-me que ela defende o cânone da literatura portuguesa. É como se alguns textos fossem sagrados e a sua não inclusão ou a sua corrupção nas leituras escolares fosse um escândalo. Se, por um lado, me parece que a defesa do cânone é essencial, por outro, a preocupação com os discursos utilitários da vida moderna, é legítima. O cidadão é bombardeado pelo discurso político, pela publicidade, pela informação, pelas leis, pelos regulamentos, e tem que saber fazer exposições, requerimentos, declarações, etc. Não é pedir demais à Escola que, no ensino básico, faça com que o alunos contactem com esses tipos de texto e os exercitem na escrita. Não está comprovado que o estudo do texto literário seja suficiente para garantir a competência do cidadão nesses aspectos.

Por outro lado, não há qualquer dúvida que o texto literário representa a excelência estética e linguística e, portanto, ele deve ser privilegiado nos programas de Língua Portuguesa. E os textos literários constituem uma herança cultural, um valor que a Escola tem que defender. Não se trata, portanto, de escolher um qualquer romance para o aluno apreender o conceito de romance. Há que decidir de entre um corpus vastíssimo quais os romances mais significativos da Literatura Portuguesa e incluí-los no programa, como tal, e não como meio de ilustrar o conceito de romance. Pois será ao próprio texto que atribuímos esse valor canónico.

Dada a escassez de tempo disponível no ensino básico, o cânone escolar será o cânone dos cânones. Nele estarão integradas as obras mais significativas da história da literatura portuguesa, aquelas que achamos importante que o cidadão conheça. Esta limitação conduz necessariamente à discussão, ao debate de como é que a literatura portuguesa deve entrar nas disciplinas de Português ou de Língua Portuguesa dos ensinos básico e secundário.

Uma opção é a das antologias que incluem excertos de textos retirados de uma pleíade dos autores mais significativos da nossa história. Passei por isso e, francamente, não gostei. Lembro-me ainda da minha antologia do 4º ano do liceu. Eram textos completamente descontextualizados. Esses pedaços de textos, supostamente, dar-nos-iam a imagem da história literária, na suposição de que a parte é uma miniatura do todo.

Mas uma história é uma história e cortá-la é tirar-lhe o essencial. Outra opção é apresentar uma história da literatura e escolher alguns textos integrais significativos para serem lidos com prazer. O professor terá que dar aos alunos os elementos históricos, linguisticos e retóricos que possibilitem essa leitura com esforço, mas, também com prazer, e não reduzir o texto a um repositório de exemplos de conceitos programáticos. A mitologia, a retórica e a gramática deverão ajudar o aluno a compreender Os Lusíadas e não o contrário. Quando a Maria do Carmo Vieira critica a não inclusão duma certa parte d'Os Lusíadas, pode-se-lhe perguntar que parte retiraria em vez dessas ou se propõe a leitura integral, caso em que estarei do lado dela.

Não tenho qualquer dúvida em defender princípios canónicos na selecção de textos para o ensino básico. Mesmo no 2º ciclo, nível em que lecciono, o problema dos manuais é amputarem os textos e transformarem histórias em trechos que já não são nada. Contos e novelas juvenis são peças que devem ser lidas na sua inteireza. Caso contrário, não são significativas, nem estimulantes. É duvidoso que o verbo ler possa significar alguma coisa quando aplicado a um excerto.

Também no 2º ciclo, andamos a reboque do “marketing” literário. Existe a tendência para seleccionar obras de leitura integral que suprem a mediocridade dos manuais. Essas obras são normalmente escolhidas de entre as novidades editoriais do ano e raramente escolhidas de entre o corpus programático. Parece-me ajuizado escolher uma novidade editorial, desde que os professores o façam de acordo com critérios de qualidade, depois de verem como a crítica recebeu o dito e, sobretudo, depois de o terem lido integralmente. Mas essa leitura não deve relegar para segundo plano a leitura de obras já consagradas no cânone da literatura infanto-juvenil nacional e universal.
Sobre este assunto, segui a polémica entre Vasco Graça Moura e Inês Duarte, dois grandes valores do nosso panorama linguístico e literário. Tenho dificuldade em situar-me nessa discussão, pois parece-me que ambos se extremaram e suspeito que tenham dito coisas que não queriam dizer. Parece-me evidente que os programas têm que respeitar tanto valores canónicos, literários, quanto critérios linguísticos e pragmáticos. Os lugares de uns e outros não se resolvem numa polémica azeda.

Tentando enunciar uma conclusão prática, proponho que o Ministério da Educação seleccione e promova, juntamente com as editoras, edições escolares – económicas - de obras integrais para os vários níveis e anos escolares. Os manuais para os alunos seriam essencialmente cadernos de actividades que se refeririam a certos textos que os alunos teriam que adquirir separadamente.

Imagino-me, por exemplo, a trabalhar o programa do quinto ano com uma selecção de contos, um livro de poemas e uma novela infanto-juvenil. Proponho que se separem os materiais: livros de texto, caderno de actividades, gramática, dicionário e prontuário e caderno de sugestões didácticas para o professor. Em vez dos pesados manuais que as crianças têm agora, o autor dum manual (caderno de actividades) teria que se referir a textos existentes no mercado e fazer um guião que facilite o trabalho do professor.

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