
(Imagem retirada de http://www-pors.hit.no/~trondc/teach.gif)
Paulo Portas, na entrevista que concedeu a Judite de Sousa, declarou que o pior que podia acontecer era o próximo ministro da educação ser “mais um teórico”. No seu programa, propõe-se o estabelecimento de exames de final de ciclo, que justifica dizendo: “não concebo o ensino sem notas e sem exames”. Defender os exames, para o líder do PP, não é, pois, teoria. Para o PP, a paixão pela educação faz-se, talvez, por... crenças, convicções. Se uma página da história da educação em Portugal corre mal ou gera muitas decepções, a solução para o PP é voltar atrás. E este regresso ao passado parece ser um valor em si próprio, o que é sintomático desta campanha que se diz 'pelos valores'.
A questão é que valores educativos são os do PP. Neste caso particular, os exames implicam também uma preferência, uma prioridade que resulta e evidencia valores.
Como se sabe, os exames foram abolidos com base no argumento de serem considerados um meio de selecção social. A ideologia pedagógica dominante nas décadas de 70 e 80, reprovava o papel da escola como meio de confirmar e legitimar privilégios de classe e reproduzir as desigualdades sociais. Nessa altura, no nosso meio estudantil universitário, a crítica era feita em termos da oposição entre avaliação contínua e exames.
Como resultado desta onda em que pontuam as chamadas ciências da educação, como os respectivos ramos especializados da psicologia e da sociologia (onde se destacam as obras de Bourdieu), não só os principais exames nacionais foram abolidos no currículo escolar, como os professores foram pressionados a dar mais relevância à avaliação de diagnóstico e à avaliação formativa do que à avaliação sumativa (terminologia que entrou – e bem - no vocabulário educativo pela mão de Benjamin Bloom).
Isto é, o professor avalia mais o resultado do seu trabalho do que o desempenho dos seus alunos. As notas resultam hoje de uma mistura de coisas de ordem diversa, como as atitudes, os valores, o comportamento e o aproveitamento. A escala de classificações no ensino básico foi reduzida de 0 a 20 para 1 a 5, diminuindo a amplitude da expressão de diferenças entre os alunos. Inventou-se a distinção abstrusa entre retenção (ao nível do ano lectivo) e reprovação (no final de ciclo). Na primeira, o aluno não transita de ano lectivo, depois do professor ter cumprido uma série de procedimentos, que começam no segundo período, no outro o aluno não transita de ano lectivo, por uma decisão feita no 3º período.
Percebe-se facilmente que o valor que preside a este estado de coisas é o da igualdade de oportunidades, ou talvez, o da igualdade pura e simples, na medida em que se tenta escamotear as diferenças individuais. A expressão “facilitismo”, que o vulgo, que não sabe ldquo;eduquês”, utiliza, refere precisamente esta situação: hoje é muito mais ácil concluir o nono ano de escolaridade sem saber muito mais do que antigamente era necessário para a quarta classe. Caricaturando a situação, podemos dizer que a escolaridade obrigatória passou de quatro para nove anos e que hoje os alunos têm mais do dobro do tempo para aprender as mesmas coisas do que antigamente.
Se isto é verdade para um número apreciável de alunos que prossegue de nível em nível sem aproveitamento, não o é para muitos outros que seguem com sucesso os programas do segundo e terceiro ciclos que são bastante exigentes. Mas convenhamos que todos os testes confirmam isto: muitos alunos progridem no sistema sem um desempenho satisfatório.
Contudo, esta facilidade em cumprir a escolaridade obrigatória revelou ser um presente envenenado: todos fazem a escola toda, mas ela perdeu valor. Porque quase todos a fazem sem dificuldade, o mercado de trabalho deixou de dar valor a essa marca e muitas famílias que passam por dificuldades económicas e sentem a necessidade de pôr os filhos a trabalhar, não vêm na escola um meio de os preparar para o desempenho de qualquer profissão.
Assim, se é verdade que preparamos alguns jovens para prosseguir estudos, continuamos a ter muitos jovens sem qualquer reparação para nada no final do ensino básico. O abandono escolar continua a ser um flagelo, precisamente porque não conseguimos convencer as famílias da utilidade da escola. Como os professores do secundário e do superior se queixam da qualidade dos novos alunos, temos que conceder que também a preparação para o prosseguimento de estudos deixa muito a desejar.
A instauração da avaliação sumativa ao nível do ano de escolaridade e os exames de final de ciclo vêm precisamente contra este conceito de igualdade substancial que se pretendeu impor no sistema educativo.
Valorizar-se-á o mérito absoluto dos alunos relativamente aos programas oficiais e não o seu percurso de aprendizagem nem o esforço desenvolvido em ultrapassar as suas dificuldades. Como resultado, os que não têm mérito suficiente para ultrapassar essas barreiras serão eliminados. A qualidade dos sobreviventes será superior. Com este darwinismo educativo, os professores terão turmas mais homogéneas e alunos mais competentes para seguir programas mais exigentes. A qualidade subirá.
O aumento da competitividade no sistema educativo, talvez traga um melhoria das aprendizagens de todos e não só dos sobreviventes, pois todos sabem que, para ter sucesso, é preciso trabalhar mais. Mas é líquido que uma maior selecção resultará em maiores taxas de insucesso escolar. E a sensação de insucesso levará ao abandono escolar, a não ser que se criem soluções profissionalizantes antes do fim da escolaridade obrigatória. Se não se fizer isto, podemos ter como certo um aumento do abandono escolar.
O exame resultará pois em coisas contraditórias: mais insucesso, mais abandono escolar e... maior qualidade dos sobreviventes. Quanto aos que ficam pelo caminho, podeis estar certos que são os que pertencem a estratos sociais de mais baixos rendimentos, os que têm dificuldades a todos os níveis, na habitação, no emprego dos pais e até na alimentação. Talvez seja nestas variáveis que se deve investir para realizar efectivamente a igualdade de oportunidades: removendo os obstáculos que impedem as crianças de ter sucesso.
O sistema de avaliação tradicional baseia-se na turma como forma de organização e no ano como unidade de valiação. Não se cumprindo as condições de passagem de ano, é necessário repetir tudo, mesmo as disciplinas em que o aluno teve sucesso.
Quando um aluno repete um ano lectivo, ninguém tem em consideração o ponto em que aluno ficou. Esta noção de repetição, de “repetente”, parece-me anacrónica face aos avanços da pedagogia (pense-se por exemplo em soluções do tipo da “aprendizagem de mestria”). Será que o Estado não consegue criar soluções organizativas e pedagógicas para as escolas que criem simultaneamente maior qualidade, maior efectividade dos programas e que sejam simultaneamente inclusivas, que não sejam um simples regresso ao passado?