Felizmente, há quem se preocupe com outros temas pedagógicos que não a avaliação dos professores. No Monde diplomatique, edição portuguesa, Hugo Mendes, escreve sobre “A massificação da selectividade: desigualdades escolares em Portugal“ em que toca num tema que constitui uma obsessão minha já de há muito a esta parte – a repetição de ano. Embora a porta de entrada do articulista para o assunto seja sociológica e política e eu tenha dificuldade em aceitar os seus pressupostos, creio que conseguiu analisar muito bem o problema dos chumbos.
A grande questão é a da desigualdade social e da sua relação com a escola. Enfim, aquilo que os marxistas colocam no âmbito da escola como instituição (aparelho, diria Althusser) de reprodução social.
Escreve o autor que “na discussão sobre as desigualdades e a escola”,
“A esquerda clama pela igualdade de resultados e a integração de todos os alunos; a direita defende uma selecção capaz de produzir elites e de formar mão-de-obra para uma economia assente na especialização funcional”.
Não consigo colocar o problema nestes termos:
- Reclamar a igualdade de resultados entre todos só pode significar nivelar por baixo e impedir os indivíduos mais talentosos de se distanciarem. Penso que será ocioso, pois se a escola pública não lhes servir, instituições haverá que a substituirão na formação de talentos. Se não significa uma “engenharia social” à maneira do empreendimento do admirável mundo novo de Huxley, embora de cunho igualitário, denota uma estúpida arrogância perante a diversidade natural, que só tem paralelo com a pretensão do socialismo soviético, chinês ou cambodjano de acabar com o mercado.
- A integração de todos os indivíduos parece-me que é um fim inteiramente válido no sentido de proporcionar oportunidades de formação a todas as pessoas, especialmente àquelas de nível socioeconómico mais baixo.
- Quanto às elites, elas aparecerão com a escola ou sem ela. A questão é que serão melhor ou pior educadas. A escola não deve ter a intenção de as formar, mas não deve deixar de promover ao máximo possível os indivíduos nos planos do conhecimento, da cultura e da tecnologia. E este é o único plano em que eu situo a escola: transmissão de conhecimentos, desenvolvimento de capacidades e habilidades intelectuais e físicas, domínio de tecnologias, formação e desenvolvimento do juízo ético e estético, como elementos importantes da cidadania.
- Quanto à mão-de-obra, acho que a escola também não deve ter a intenção de a treinar directamente, mas sim apenas a de criar competências que aumentam o leque de percursos que uma pessoa pode seguir, depois de escolarizada.
Posto isto, concordo com o autor no que respeita à gravidade dos efeitos da pobreza ou das grandes diferenças de rendimento sobre o desempenho escolar e considero que não há recursos a mais no combate a estas dificuldades e na defesa da igualdade de oportunidades.
É aqui que entra a repetição de ano: muitos alunos, especialmente os dos estratos mais desfavorecidos da população, soçobram no percurso escolar. O autor diz que
“A retenção acabou por ser a forma encontrada pelo sistema para gerir o aumento da tensão, que advém do facto da selecção passar a ser feita no seu interior e não às suas portas”
Ora isto parece ser uma leitura histórica inexacta, pois o chumbo, chamem-lhe o que quiserem, sempre foi um meio de selecção escolar. E o abandono escolar teve sempre uma estreita relação com ele. Dos chumbos dos seus filhos, concluíam os pais que não davam para a escola e iam trabalhar muito cedo. Muito pelo contrário, os chumbos têm diminuído, mas continuam a apoquentar muito, precisamente porque a maior parte das suas vítimas permanece na escola. Contudo, a nossa maior preocupação continua a ser o número dos que vão embora antes de tempo.
Quer se queira quer não, a verdade é que o chumbo é uma receita pedagógica. Não se chumba naturalmente, mas porque se definem níveis de desempenho médios que já se sabe que muitos não conseguirão atingir no tempo que lhes é concedido. Se se definissem níveis mais baixos, talvez todos os conseguissem realizar. O problema é que, nesse caso, a maioria sentiria que não estava a fazer nada na escola. Inversamente, era possível definir metas que só 25% dos alunos realizaria e todos os outros seriam chumbados. Mas isso descontentaria a maioria. Por aqui se vê quão artificial é o chumbo e quão arbitrários são os critérios que o definem.
A análise do PISA, apresentada por Hugo Mendes, mostra com toda a clareza, em que difere Portugal dos países do pelotão da frente, neste âmbito. Os alunos são seleccionados para o PISA de acordo com o critério da idade. No teste dedicado aos alunos de 15 anos, Portugal é o segundo país da OCDE com maior diferença de graus de escolaridade na população sujeita a exame, pois apenas cerca de 50% se encontra no nível correspondente à idade: 10º ano.
A análise do desempenho nos testes revela outro facto muitíssimo relevante: a maior parte dos alunos com baixo desempenho nos testes encontra-se no ano correspondente a um percurso sem repetições, ao passo que uma grande parte dos portugueses na mesma situação se encontram em anos anteriores. Assim, os alunos portugueses com 329 no teste de Ciências – uma pontuação baixa, pois os melhores tinham mais de 600 - diferem dos noruegueses no facto de a maioria destes se encontrar no 10º ano, enquanto os nossos estavam no 7º ou no 8º.
A conclusão a tirar daqui é que a retenção não é utilizada como recurso pedagógico na Noruega, nem na extensão, nem nas mesmas situações que em Portugal. Como verificamos que os noruegueses têm melhores resultados que nós nos testes, podemos concluir que a retenção não ajudou em nada os alunos a terem um melhor desempenho.
Acho que serão raros os casos em que um aluno melhora com a repetição de ano. O abalo motivacional por ser assim seleccionado negativamente é evidente. Muitos alunos vêm para a escola aprender que não são capazes, que não aprendem, que a escola não é para eles, que serve só para brincar e se divertirem. Há pais que ajudam dizendo expressamente aos filhos que vão para a escola porque são obrigados, senão iriam trabalhar. A probabilidade de actos de indisciplina aumenta extraordinariamente entre os alunos com histórias de repetição sucessiva.
A integração de alunos mais velhos já desmotivados em turmas de alunos com dois ou mesmo três anos a menos é uma provável fonte de problemas. Muitos são professores de mau comportamento e de desvalorização dos saberes e das actividades da escola. É evidente que um aluno que fracassa tem processos de afirmação pessoal que resultam da desvalorização das situações em que não é bem classificado. A sua superioridade física, com dois anos de idade a mais, constitui um recurso para se valorizarem no âmbito do estatuto sexual e da identificação. Por vezes, vejo alunos de bom desempenho escolar a mimarem, por vezes, desajeitadamente, certas atitudes dos mais velhos. É evidente: ninguém quer passar por betinho.
Contudo, mesmo os alunos que têm um historial de repetições e de classificações baixas, aprenderam muito na escola: quase todos sabem ler e escrever, embora não cumpram as regras de correcção ortográfica e os seus desempenhos na leitura sejam medíocres. Mas tudo isso é passível de desenvolvimento durante os anos de crescimento que ainda têm pela frente.
Dadas as desvantagens evidentes, não se entende por que continuamos a reter alunos.
Acho que o fazemos principalmente por haver, senão leis, pelo menos portarias do Ministério da Educação que definem regras de transição de ano e de condições de retenção. Na maior parte das escolas do ensino básico, se um aluno tem nível 2 a Língua Portuguesa e a Matemática ou a 3 quaisquer outras disciplinas, fica retido, isto é, repete o ano.
É absurdo que a Sra. Ministra acuse os professores de chumbar os alunos em demasia, como se houvesse aqui uma medida exacta que não devesse ser ultrapassada. Se há condições de retenção, há chumbos. É também abusivo considerar uma eventual descida no número de reprovações como um melhoramento do aproveitamento resultante da política educativa. Na verdade, o governo está a desincentivar as reprovações e as negativas, apresentando-as como sintoma de mau trabalho docente. O resultado é o melhoramento dos números sem contrapartida evidente nas aprendizagens. Isto é: está a pôr de lado a reprovação sem mudar abertamente os procedimentos, atirando para os ombros dos professores responsabilidades que não são deles, mas sim do governo.
Verificando-se a inadequação da dita “retenção” o que há a fazer é mudar a lei e criar outros critérios de excelência e medidas de progresso nas aprendizagens para valorizar o mérito e permitir a organização do processo e dos percursos de ensino e aprendizagem. Nesse caso, importa transferir as perspectivas da população da “passagem de ano”, para outros indicadores do desempenho dos alunos.
Julgo que os alunos noruegueses que chegam ao 10º ano sabem se têm condições para prosseguir estudos superiores ou se é melhor seguir uma via profissional, mesmo aqueles que têm desempenhos equivalentes aos seus colegas portugueses do 7º ano de escolaridade.
O terreno inquinado do populismo pedagógico a respeito do facilitismo está instalado tanto a nível ministerial como ao nível das escolas. A ministra não respondeu claramente aos críticos dizendo que sabia que os números não equivaliam a mais aprendizagens, mas que a diminuição do número de reprovações era uma coisa boa porque as reprovações não adiantam nada. Pelo contrário, respondeu nos mesmos termos, contestando a crítica, advogando a milagrosa eficácia imediata das medidas que tomou.
Nas escolas, o discurso da autonomia pedagógica resulta nisto: continua o mesmo jogo de manipulação dos níveis atribuídos pelos professores. Milhares de notas são votadas, para que os alunos passem de ano, apenas com argumentos extrínsecos. É verdadeiramente maquiavélico que às crianças seja dado o objectivo de “passar de ano”, que sejam difundidas regras de passagem de ano e que, no final do ano, sejam modificadas notas para que alunos que não conseguiram transitar, sejam passados.
Os conselhos executivos exigem a votação de notas apenas para que um dado aluno possa ir para um curso CEF ou para que um dado aluno não caia na marginalidade ou por se crer a reprovação repetida, inútil para um dado aluno. Ora, se estes são argumentos suficientes para justificar a passagem de ano porque não são explicitados e se mantém os níveis atribuídos pelos professores. Se nos pusermos do lado dos alunos e pensarmos nas notas como uma mensagem, pensem no que eles poderão julgar ao ver a pauta com as notas dos seus colegas alteradas, eles que sabem muito bem o que esses felizardos fizeram durante o ano. Um aluno, que viu quatro dos seus colegas com as notas modificadas a transitar de ano, está ressentido com um certo professor por ter chumbado. Tem toda a razão. Com a facilidade com que os níveis são modificados, é evidente que um dos seus também poderia ter tido a mesma sorte.
A filosofia actual a respeito da avaliação dos alunos redunda, em muitas escolas, no seguinte: se um aluno tem menos de quinze anos, deixá-lo reprovar, mas no devido tempo, transitá-lo para ir para o CEF. Primeiro, desperdício, desmotivação e chumbos, depois… CEF.