Teacher Man de Frank Mc Court é um delicioso registo autobiográfico que muito tem a dizer àqueles dos seus leitores que também foram ou são professores. É de um percurso problemático e não de uma história de proveito e exemplo que o livro trata.
Com a sua narrativa, Frank conduz-me à ideia de que façamos o que fizermos, quaisquer que sejam as teorias psico-pedagógicas que adoptemos, o que fica são fatias de vida únicas, de professores e alunos. Quer me parecer ser essa a principal lição dos professores que se podem classificar como pertencentes ao paradigma afectivo, caso de Mc Court e do nosso Sebastião da Gama.
Mais do que a conformidade a um programa ou a um ideário técnico-pedagógico, eles buscam uma relação significativa. Apercebem-se da realidade existencial e única do encontro pedagógico. O aluno deixa de ser um elemento sujeito a um processo padronizado, cujos resultados se podem avaliar e comparar para se tornar numa pessoa com quem o professor tem de estabelecer uma relação que é sempre de ordem afectiva.
Se um aluno está fora da situação da aula, há sempre um problema que tem necessariamente contornos afectivos. “Dar matéria”, neste âmbito, é o que menos importa, sobretudo em disciplinas, como a leitura e a escrita em língua materna, oficial, para ser mais preciso, pois muitos a têm como castelhana, chinesa, coreana ou vietnamita e não “standard english”.
Não se trata, como já disse, duma apologia duma certa maneira de estar na profissão docente, embora muitos leitores o leiam assim. Se o fosse, o valor literário do texto perdia-se em muito. Nesta recensão, não posso também acusar, criticar ou defender a orientação pedagógica do professor Mc Court, “tout court”, pois o que aqui está em causa é precisamente uma experiência de vida, com que se pode aprender mais do que em muitos compêndios de psicopedagoia.
O professore Mc Court começa precisamente por ser, como muitos outros professores, alguém que tem que sobreviver e não alguém que escolheu ser professor por vocação. O seu objecto era desde o início o trabalho literário ou sobre a literatura.
O seu texto parece-me um inventário das situações vividas pela generalidade dos professores, pois reconheço nas suas histórias muito do que vejo acontecer na carreira de muitos professores.
Começou a dar aulas em escolas secundárias técnicas que nós hoje em Portugal resumiríamos com a sigla “CEF”, isto é, tinha que leccionar inglês a rapazes que tinham como horizonte de vida ser canalizadores. Por isso, o título do primeiro capítulo é significativo: “It´s a long road to pedagogy”. Mc Court tenta sobreviver como professor o que implica conquistar os seus alunos, o que não é feito sem vítimas e sem retrocessos, pois acontecem inúmeros incidentes, por exemplo, conflitos pessoais com alunos que o levam a não ter o seu contrato renovado no ano seguinte.
Mc Court lastima a sua necessidade dessa conquista afectiva, desse reconhecimento perante a turma. O “novo professor” é o bombo da festa a ser testado pelos jovens alunos. Quando consegue ter a turma quase toda na mão, encontra o último obstáculo, um aluno que desafia a sua autoridade. O professor está no bando e tem de conquistar a liderança contra um rival. Aqui surge a panóplia de truques – cada tem os seus – e Mc Court limita-se a narrar os factos, de como obteve o reconhecimento.
Para dominar a assistência, Mc Court descobriu uma receita notável: narrar histórias comoventes da sua infância em Limerick, na Irlanda. Os alunos também aprenderam a distrair o professor com perguntas sobre o seu passado na Irlanda. Depressa Mc Court compreendeu a estratégia: evitar as lições de “spelling” e os exercícios, distraindo o professor com a sua “miserable childhood”. Entre professor e narrador, Mc Court viveu uma missão difícil nestas escolas, onde, parece se ter tornado numa referência na biografia dos seus alunos.
Facto exemplar desta situação é o passeio de Mc Court com vinte e cinco raparigas negras na baixa de Nova Iorque. O professor atrevera-se a levar ao cinema as alunas de uma certa turma que mais nenhum professor da escola arriscava. A narrativa é de um humor irresistível. Um professor branco, um sobrevivente, leva 29 meninas negras ao centro de Nova Iorque. As meninas também eram sobreviventes e conhecem todos os truques, como saltar a barreira do Metro para não pagar bilhete e deixar o professor sozinho na bilheteira a pagar o cinema para ficarem com dinheiro para outras coisas, etc.
Da carreira de professor, ficamos com o retrato que os portugueses têm da coisa. Tudo se resume a uma máxima: “professor bom é demasiado bom para ensinar”. Muitos estudam de tudo o que serve para subir na carreira e dar menos aulas ou delas fugir para sempre, tornar-se “principal” ou “supervisor”, isto é cargos não docentes, melhor remunerados.
Mc Court conseguiu finalmente, o seu Eldorado, dar aulas numa escola, cujos alunos afluem a Harvard e a outras das melhores universidades.
Aqui a problemática muda: professor de “creative writing”, tem de conduzir meninos com uma vida rotineiramente satisfatória a ganhar ideias para escrever. Se nas escolas profissionais, foram as justificações de faltas e atrasos – “excuse notes” - que serviram de desencadeador da escrita, na escola da elite, foram as receitas de culinária a desempenhar esse papel.
Revelou-se também a contradição entre a expectativa das famílias centrada na ideia da nobreza do acto de escrita e o facto de à genialidade não corresponder qualquer padrão moral supostamente elevado na mesma medida. Por isso, Frank relata as objecções de encarregados de educação à presença do vagabundo, ladrão, proxeneta, traficante e escritor Herbert Huncke numa das suas aulas. Ora, Huncke era um figura central do movimento Beat, companheiro de Kerouac e de Ginsberg e uma presença constante nos cafés daquela zona de Nova York. Mas nem a biografia de Hemingway seria recomendável neste aspecto. Na escrita, risca-se e arrisca-se muito.