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Sem Rede

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

Sem Rede

17
Mai15

Noam Chomski ao Expresso

Redes

Tivemos a recente visita de Chomski. Não sei se com ele veio também o grande linguista ou só o ativista político. Solicitado a comentar o ataque ao Charlie Hebdo pelo Expresso (a), Chomski declarou que ele não era Charlie, implicando na expressão uma solidariedade estética e ideológica:

"Não, eu não sou Charlie! E não gosto desse jornal!".

Ora, não é disso que se trata, mas apenas da defesa da liberdade de expressão. Creio que toda a gente entendeu isso. Não ser Charlie é, por exemplo, Sartre a vender na rua um jornal que era pereseguido pela polícia apesar de, nesse gesto, não pretender estar a subscrever as posições daquela redação.

É pena não termos uma justificação do desagrado de Chomski relativamente ao "Charlie Hebdo". Talvez compreendêssemos melhor os seus pontos de vista. Mas Chomski prefere inverter a argumentação e generalizar o conceito de terrorismo aos EUA que seriam terroristas pela campanha global de assassínios que o governo de Obama está a fazer no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão.

Não sei se com este termo se referem todas as ações militares conduzidas pelos Estados Unidos nesses países ou apenas os assassinatos propriamente ditos que são um tipo de ação militar claramente assumido pela Administração. Há inimigos indentificados pelas autoridades militares americanas que se encontram numa lista para serem abatidos pelo exército. Tais ações justificam-se defensivamente por se tratar de indivíduos estrangeiros, em países hostis, que estão a preparar ataques aos EUA. Por exemplo, lembro-me de ver o Bill Clinton a falar sobre o ataque, ordenado por ele, a uma fábrica do Sudão que era de facto controlada por elementos ligados à Al-Qaeda, com o objetivo de atingir indivíduos implicados no ataque às embaixadas na África Oriental. Temos visto o que o governo sudanês tem feito ao seu próprio povo, com genocídios no Darfur e noutras regiões pelo tipo de gente solidária com os alvos do programa de assassínios americanos.

Chomski parece aceitar o que os atacantes ao Charlie Hebdo queriam: que eles representam o mundo islâmico contra o Ocidente. Dum lado, coloca o ataque ao "Charlie", do outro, ações militares americanas. Rejeita que o ataque ao "Charlie" seja o maior ataque à liberdade de expressão na nossa memória viva, porque

esta "memória inclui o que eles nos fazem, mas não o que lhes fazemos".

Diz isto ao comparar um ataque ao hospital de Faluja ao caso do Charlie Hebdo. Eram realmente os mesmos - a Al Qaeda do Iraque. Não estou em condições de avaliar o que aconteceu em Faluja, mas sei quem eram e sei que eles têm morto muito mais iraquianos do que americanos e que representam uma minoria sunita, mesmo, entre estes, e que afrontam a liberdade e a vida da maior parte das pessoas do seu país.

Independente dos danos, tanto no caso Charlie, como em Faluja, temos que ver os objetivos dessas ações e eu presumo que temos que dizer de que lado é que estamos. Chomski foge assim ao essencial que é pronunciar-se sobre os ideais em causa nas duas ações: dum lado, um grupo que pretende impor pela força um tipo de sociedade onde não existe qualquer liberdade, onde todos têm que comungar um certo credo religioso, onde as mulheres estão submetidas a uma tirania total. Enfim, talvez Chomski não goste desta palavra, mas dum lado está o totalitarismo, do outro, a liberdade. Digo isto desta forma simplista, pois sei que muitas gradações e cambiantes há a fazer, mas o simplismo chomskeano merece uma resposta simplista também.

No comentário à dívida portuguesa, Chomski, coloca-a sob a etiqueta do odioso. Contudo, continuamos a criar mais dívida. A dívida está nas nossas autoestradas, está em cerca de 8% do nosso orçamento de estado anual. Serão as nossas estradas odiosas? O mais caricato disto tudo é não perceberem que nós, portugueses, espanhóis e gregos, só queremos resolver o problema da dívida para podermos continuar a endividar-nos.

As dificuldades de Chomski e desta esquerda simplória que o acompanha resultam da sobrevalorização negativa do que denominam de imperialismo americano. Nada do que está contra a América e é combatido por esta lhes exige qualquer inspeção ou avaliação. Todos os adversários socialistas das nossas democracias ocidentais estão do lado do bem contra o mal. A extrema esquerda americana também tem um eixo do mal a contrapor ao de Bush.

Por isso, Chomski preferiu esquecer ou desvalorizar o deastroso genocídio dos Kmehr Vermelhos no Cambodja, pois estes eram inimigos dos EUA (b). Ele e outros, entre os quais se encontra a equivocada Joan Baez, chegaram a elogiar os progressos de um regime político que deixou atrás de si um lastro de três milhões de mortos e, continuam hoje numa posição de negação a propósito desse e de outros holocaustos. Para apoiarem regimes como esse e o da Coreia do Norte, não precisam de muita informação nem garantias e os desvios entre aquilo que imaginavam e o que realmente lá se passava eram ignorados ou minimizados.

Chomski e todos os outros intelectuais que apoiaram o regime cambodjano de 1975 a 1979 deviam sentir-se corresponsáveis por não ter havido nenhuma ação digna de registo da comunidade internacional nesse período, pois criaram uma atmosfera favorável a esses regimes, que, na sua perspetiva, se teriam liberto do imperialismo americano em 1975. A verdade é que logo a seguir à conquista de Phnom Penh houve informações de jornalistas e refugiados que contradiziam a sua idílica e romântica versão.

(a) Ver Expresso, Revista de 16 de Maio de 2014.

(b) Cambodian genocide denial; ver também Ear, Sophal, The Khmer Rouge Canon 1975-1979: The Standard Total Academic View on Cambodia.

Mais discussões sobre as posições de Chomski sobre o que se passava no Cambodja:

Sharp, Bruce, Averaging wrog answers: Noam Chomski and the cambodja controversy

Chomsky lies

14
Mai15

Acordos ortográficos

Redes

Ao contrário do que disse Nuno Pacheco, jornalista de O Público, aqui, há um acordo ortográfico para o alemão, assinado em Viena, em 1996, pela Alemanha, a Áustria, a Suíça e o Liechtenstein. Portanto, o português não é a única língua a fazer acordos ortográficos.

Esta "Rechtsschreibung" é a que vigora nos documentos oficiais e no sistema de ensino. Nas publicações que vou lendo, não encontrei ainda diferenças relativamente ao que vou aprendendo em termos de normas de escrita.

Esta reforma ortográfica teve também a dissidência de uma associação de professores "Wir Lehrer gegen die Rechtschreibreform" ("Nós professores contra a reforma ortográfica").

Uma visita à página, mostrar-nos-á que toda a ação se registou nos doia anos que se seguiram à reforma.

 

"Wir Lehrer gegen die Rechtschreibreform" in http://de.wikipedia.org/wiki/Wir_Lehrer_gegen_die_Rechtschreibreform

 Página da associação de adversários do acordo: http://www.raytec.de/rechtschreibreform/index1.htm

08
Mai15

Minas e armadilhas na PACC

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Há várias, mas, neste artigo, vou só analisar uma delas. Pertence à prova específica de Português, nível 1. 

1. Na translineação, os grupos consonânticos mantêm-se juntos quando

  • (A) formam codas silábicas complexas.
  • (B) são ataques complexos de sílaba.
  • (C) são pronunciados juntos.
  • (D) constituem dígrafos.

A expressão "grupos consonânticos" refere entidades fonéticas e fonológicas e não letras. Esta é a primeira armadilha em que o professor do primeiro ou do segundo ciclo pode cair. Por exemplo, "nh" e "lh" são dígrafos que representam, cada um, uma única consoante. Portanto, não se põe a questão de ficarem ou não juntos, pois cada um deles é apenas uma unidade. Há outros dígrafos consonânticos em que as letras se separam na translineação - "ss" e "rr", por exemplo, e que não correspondem ao que é referido no enunciado.

Para a palavra "juntos" da instrução fazer sentido, tem de haver mais de uma consoante como acontece com os grupos br" (vertebrados) e "pl" (cataplasma), por exemplo. Isto é, a alternativa certa é a (B), dos "ataques complexos", que corresponde a esta situação.

O professor pode não fazer erros de translineação, conseguir pôr os seus alunos a translinear bem e, contudo, falhar nesta questão por não se lembrar do que são "ataques complexos de sílaba" ou o que são "codas silábicas complexas". Para verificar verdadeiramente a capacidade do professor neste domínio, substituir-se-ia esse palavreado técnico por expressões descritivas: (B) a sílaba tem mais de uma consoante à esquerda da sua vogal ou ditongo. Em (A), podia se dizer, por exemplo, "se encontram à direita da vogal ou ditongo da sílaba".

Quem elaborou o enunciado não quis avaliar nem a competência ortográfica do professor nem a sua capacidade para ensinar a translineação, mas apenas o seu domínio de uma terminologia desnecessária na sua prática letiva.

02
Mai15

A educação literária nos novos programas de Português do ensino básico.

Redes

A mais recente proposta programática para o ensino do Português[1] introduz a novidade de um domínio a que os autores chamam “educação literária”. Este artigo destina-se a analisar este conceito e as consequências que dele se deduzem.

Nos objetivos do programa, a “educação literária” parece corresponder a objetivos que se referem ao desenvolvimento da capacidade de leitura crítica e de partilha dum património literário nacional e internacional – objetivos 14, 15 e 16[2]. Acrescenta-se a seguir, no objetivo 17[3], uma preocupação com o reforço da “inscrição cultural” no ensino do Português, numa redação que infringe as regras de coesão sintática da sequência, já que, com alguma boa vontade, o leitor parece ser induzido a reconhecer que “o aluno” é o sujeito dos verbos que dão início aos objetivos. Se o sujeito de toda a sequência não é o mesmo, há um lamentável erro gramatical na sua não explicitação em cada um dos itens.

Apresentando-se como uma novidade, é parca a justificação desse rótulo como uma parte maior do programa de Português, pois o que vemos nos objetivos acima referidos não vai além do que estava sob outras rubricas nos programas anteriores. Ficamos apenas com uma lista de títulos de leitura obrigatória para os 9 anos do ensino básico. É essencialmente isso a “educação literária”, para além da referida migração de conteúdos e objetivos dos outros domínios. Essa nova classificação de conteúdos tem consequências que pretendemos analisar, tanto na leitura do documento como, provavelmente, na sua própria aplicação, já que denota necessariamente uma conceção do que é a língua, a leitura, a escrita, a oralidade e o texto literário. E essas ideias informarão, provavelmente a sua concretização nas nossas salas de aula.

A justificação para uma tal lista, obrigatória e única, aparece na caraterização do 1º ciclo. Ter-se-ia definido um corpus único por ano letivo para todas as salas de aula do país a fim de “não reproduzir diferenças socioculturais exteriores”[4]. Desta asserção, concluímos que, até agora, na opinião dos autores do programa, a possibilidade dos professores escolherem os textos de leitura para os seus alunos tem enfermado da reprodução dessas diferenças socioculturais!

Se compararmos os objetivos da educação literária deste programa com os da leitura e da escrita do programa de 2009[5], não encontraremos nenhuma novidade relevante. Haverá realmente vantagem em colocar esses conteúdos sob a nova etiqueta da “educação literária”? Se o que tivesse migrado fosse específico da literatura, talvez a mudança se justificasse. Se não é esse o caso, estamos a passar uma noção errada. Por exemplo, os recursos expressivos ou figuras de estilo que são tradicionalmente elencadas nos manuais de retórica. Basta pegarmos num desses manuais, por exemplo no de Lausberg[6], para percebermos que o cenário privilegiado do exercício da retórica é o tribunal ou a assembleia onde o orador tem que defender uma posição. As figuras de estilo são armas de combate judicial e político e, também, claramente, processos de escrita literária. Mas no essencial os tropos e as figuras de frase estão na linguagem quotidiana, na vida.

Observe os seguintes itens de objetivos ou conteúdos:

  • “Aperceber-se de recursos expressivos utilizados na construção dos textos literários (anáfora, perífrase, metáfora) e justificar a sua utilização[7]
  • “Identificar e reconhecer o valor dos recursos expressivos já estudados e, ainda, dos seguintes: anáfora, símbolo, alegoria e sinédoque”[8]
  • “Recursos expressivos: enumeração, personificação, comparação, anáfora, perífrase, metáfora, aliteração, pleonasmo e hipérbole”[9]

Ao serem inseridos apenas na “educação literária” sugerem que na leitura e na escrita não literárias não há recursos expressivos. Ora, não há praticamente nenhum relato de futebol que não inclua várias das figuras referidas. A ironia e o eufemismo, referidas na educação literária do 8º ano não deixarão de estar presentes na luta eleitoral para a associação de estudantes. O problema é que estes objetivos estão em falta na leitura e na escrita.

A verdade é que os processos estilísticos e retóricos fazem parte da língua que, hoje, já não é considerada como um domínio que se circunscreve à palavra e à frase. A estreita dicotomia da língua e da fala está hoje ultrapassada. O discurso e o texto também têm regras e regularidades que fazem parte da nossa competência para falar, ler e escrever.

A tentativa de Roman Jakobson de definir uma função poética da linguagem assente sobre as caraterísticas da mensagem foi uma via falhada de diferenciar o texto literário dos outros. Como nos mostra eloquentemente a Teoria da Literatura de Vítor Aguiar e Silva, a literariedade é dada, sobretudo, pela pertença do texto a um sistema semiótico literário. É essencialmente o modo de ler que torna o texto literário. Embora haja muitos textos que são produzidos com intenção literária, outros há vindos de outros sistemas de comunicação como é o caso da política, da historiografia, da filosofia e da jurisprudência. Vejam-se por exemplo, as crónicas de Fernão Lopes ou os sermões do Padre António Vieira que são agora lidos não pelo seu conteúdo proposicional, mas, antes, pela forma como exprimiram as suas ideias.

Verifica-se, pois, que o PMCPEB encerra na educação literária coisas que pertencem a toda a leitura e a toda a escrita. Além disso, inclui itens não específicos que têm de ser, por isso, repetidos nos outros domínios. São disso exemplo os objetivos relativos à inferência, que estão em ambos os domínios. E quando se especificam tipos de inferência, estamos de novo a fazer crer que esses tipos de inferência são típicas dos chamados “textos literários”. Assim, note:

  • “Fazer inferências (de agente – ação, de causa – efeito, de problema – solução, de lugar e de tempo)”[10]

Trata-se de um objetivo que não é, de modo algum, específico da leitura literária, mas sim de muitos tipos de texto que se referem a ações e a acontecimentos. Desde logo, as notícias, reportagens e crónicas jornalísticas.

Concluindo: o domínio da educação literária repete e entra em conflito desnecessário com a leitura e a escrita. Não será mais produtivo considerar a dimensão literária como um aspeto imprescindível da leitura, da escrita e da oralidade do que criar um compartimento específico? Creio que o ensino da literatura só tem a ganhar em não ser considerado como uma coisa esclerosada, fechada em si mesma, mas antes como parte da nossa experiência de habitantes desta língua que tem um património que nos enriquece a todos, mesmo aos que não se interessam muito pela literatura propriamente dita, pois a perspetiva estética e a complexidade retórica estão presentes em muitas situações não propriamente literárias.

Este erro é uma estranha originalidade portuguesa, pois ninguém se imiscuiu assim nos domínios do ensino da sua língua em defesa de nenhuma das três grandes literaturas que mais influenciaram a nossa. Falo da Inglaterra, da França e da Alemanha. Nos programas do ensino básico atuais da Inglaterra[11], a disciplina de inglês divide-se em:

  • Spoken language (linguagem falada)
  • Reading (ler)
  • Writing (escrever)
  • Grammar and vocabulary (gramática e vocabulário)

A perspetiva literária aparece em todos os “domínios”. Na leitura, por exemplo, faz-se referência ao património literário e na gramática e no vocabulário, por exemplo, referem-se os conceitos necessários para falar de literatura. Portanto, há uma perspetiva literária em todos os domínios da atividade linguística humana.

Em França, os programas atualmente em vigor[12] para os graus correspondentes ao nosso ensino básico, dividem-se em:

  • L’étude de la langue (estudo da língua)
  • La lecture (leitura)
  • L’expresssion écrite (expressão escrita)
  • L’expression orale (expresão oral)
  • L’histoire des Arts (domínio tansversal em que o professor de francês entra com a sua parte, de facto, história “das artes da língua” que não inclui conteúdos específicos, por exemplo, de narratologia ou retórica).
  • Les technologies de l’information et de la communication (as TIC, que também são um domínio transversal)

A literatura inclui-se nos vários “domínios”, especialmente na leitura, e também não há aqui nenhuma categoria aglutinadora de conteúdos equivalente a “educação literária”.

Na Alemanha[13], consideram:

  • Sprechen und Zuhören (falar e ouvir)
  • Schreiben (escrever)
  • Lesen - Umgang mit Texten und Medien (Ler – "desembaraçar“-se com textos e com os media)
  • Sprache und Sprachgebrauch untersuchen (Investigar a língua e o seu uso)

Também aqui, tal como nos outros dois países, os conteúdos literários integram-se especialmente na leitura. Por exemplo, na leitura distribuem-se descritores de desempenho para o trabalho com

  • textos não literários (Sachtexte)
  • textos literários (literarische Texte)
  • os media.

Compreende-se o resultado desta verificação, pois, se pensarmos no que existe de substantivo no ensino duma língua, encontraremos, por um lado, conceitos e conhecimentos de gramática, de retórica e de história da língua e da literatura. Todos estes conhecimentos concretizam-se em práticas linguísticas que são do domínio do oral ou do domínio da escrita, da produção ou da compreensão e aí temos os quatro domínios ou competências em que a atividade do aluno evolui. A maior parte dos programas europeus de língua materna opta por considerar ler, escrever, falar e ouvir como as partes maiores em que se subdivive. Se juntamos a isto uma área especial que recorta conceitos, conhecimentos e práticas linguísticas, o nosso programa entra em dificuldades de coerência na sua organização que é o que estamos a verificar na leitura da proposta de PMCPEB.

Os três países que investigámos não têm textos de leitura obrigatória embora todos apresentem ao professor listas de onde ele pode fazer as suas escolhas. Nos programas franceses, do sixième ao troisième[14] do Collége, combina-se uma perspetiva histórico-literária com uma preocupação com a especificação dos géneros e com a idade do jovem leitor. No sixième, dominam os textos fundadores da antiguidade incluindo a Bíblia, o mito de Gilgamesh, as obras épicas de Homero e Virgílio; os contos tradicionais de Perrault, Grimm, Andersen assim como os contos africanos, poesia diversa, fábulas de La Fontaine e peças de teatro de Molière e contemporâneas. No cinquième, temos os textos medievais com a canção de Rolando e o ciclo do Graal, as narrativas de aventuras de Marco Polo a Defoe, entre outros, a comédia (Molière ou outros). No quatrième, cartas de grandes autores, romances do séc. XIX, poesia diversificada e, de novo, comédia. No troisième, temos os três géneros com privilégio para os séculos XX e XXI. São listas bastante extensas, de onde o professor é solicitado a selecionar um ou dois textos de cada grupo genológico definido em compreensão:

“Les professeurs choisissent librement des textes et œuvres dans le cadre fixé par les programmes. De la 6e à la 3e, les programmes de français suivent pour partie une progression chronologique en relation avec celle des programmes d’histoire : textes de l’Antiquité en 6e, littérature du Moyen Âge et de la Renaissance en 5e, le récit au XIXe siècle en 4e, œuvres du XXe et du XXIe siècles en 3e.”[15]

No que respeita à origem dos textos, prima a perspetiva do património literário universal, pois ao lado dos franceses, aparecem clássicos de outras literaturas. O mesmo acontece na Inglaterra e na Alemanha. Nesta, classificam-se as recomendações em grupos:

5º e 6º

- livros para jovens; literatura infanto-juvenil clássica; contos, mitos e fábulas.

7º e 8º

- literatura infanto-juvenil clássica; narrativas curtas; novelas e romances; texto dramático

9º e 10º

- narrativas curtas; novelas e romances; texto dramático

A poesia é explicitamente deixada ao cuidado do grupo de disciplina que tem de a selecionar de acordo com os conteúdos programáticos. Adverte-se para a não obrigatoriedade de cumprir a lista[16], e definem-se vários critérios para o grupo de disciplina escolher os textos em que importa considerar a diversidade de épocas e correntes literárias, a importância da obra em termos de significado histórico-literário, a diversificação de géneros e os interesses e idades dos alunos.

No novo programa de inglês, não há referência a nenhum título obrigatório. O único autor referido é Shakespeare do qual se impõe a leitura de uma peça no KS4 e duas no KS3. Todas as outras referências são definidas em compreensão e não em extensão, por exemplo, “obras dos séculos XIX, XX e XXI”, “poesia posterior a 1789, incluindo a poesia romântica”, “literatura clássica”, “literatura não ficcional como ensaios, recensões críticas e textos jornalísticos” e “peças de teatro”[17].

É fácil de compreender que países com literaturas tão ricas não possam impor leituras obrigatórias a professores e alunos, pois isso implicaria que as autoridades estivessem a legislar a favor de uns escritores contra os outros, a não ser relativamente a autores ou textos cujo significado histórico e cultural se sobrepusesse consensualmente a todos os outros. Em Portugal, a única obra a que pode ser reconhecido esse estatuto é Os Lusíadas. Como autores, talvez Gil Vicente, Eça ou Pessoa possam ser obrigatórios, mas não Os Maias (no Secundário). Um professor deveria poder ler com os seus alunos outros títulos de Eça de Queirós. Como vimos, para os ingleses, só Shakespeare é “statutory”. Quanto às peças a ler, que as escolham os professores!

Em Portugal, a orientação atual é ideologicamente impositiva. Isto é, alguns indivíduos acharam-se suficientemente importantes para fazer as escolhas dos professores e alunos deste país. Ao fazê-lo, fizeram regressar o livro único de Português, a seleta, a antologia obrigatória, que será publicada por várias editoras em manuais comercialmente concorrentes para o ensino, mas, que de facto, incluem os mesmos textos.

Fizeram-no em níveis de ensino em que nenhum cânone faz sentido, no primeiro e no segundo ciclos. Obras de qualidade discutível de grandes autores da literatura adulta são impostas às criancinhas sob o critério da sacralização da voz do autor. Se é de Saramago ou Redol, é um grande texto! Isto é absolutamente risível numa área – a literatura infanto-juvenil - onde abundam textos de elevada qualidade estética, pedagógica, linguística, numa palavra, literária. Ou são as rimas, as lengalengas, os trava-línguas, tudo o que diz respeito aos textos curtos que chamam a atenção para as unidades distintivas da língua e para a estrutura sintática através do paralelismo e da recursividade. Ou são as anedotas, as adivinhas, os contos tradicionais antologiados ou recontados com mestria por muitos autores. Também aqui se impôs um texto em detrimento de outro, chegando-se ao ponto de incluir referências editoriais!

Parece-me inútil, seguir pela via da discussão dos nomes, como se um jovem leitor se fosse formando com bocadinhos de vários autores. Para conseguir que não lhe falte nenhum bocadinho, pois que leia excertos dos antologiáveis! Esse é o erro da antologia que junta partes de obras de uma galeria de autores sagrados. Como não é possível ler integralmente todas as obras, o jovem lê textos amputados, como se o génio literário expresso na obra permanecesse em cada uma das suas partes. O risco desta maneira de orientar a leitura é reduzi-la à procura de exemplos das generalizações histórico-literárias que o professor quer "dar" com um determinado texto.  

Resumindo, contesto neste programa:

  1. A criação dum domínio chamado de “educação literária”.
  2. A imposição de uma lista única de obras de leitura obrigatória que significa o regresso do livro único.
  3. A fraca qualidade de várias escolhas.

 

[1] Buescu, Helena C., Morais, José, Rocha, Maria Regina, Magalhães, Violante F., Programa e metas curriculares de português do ensino básico, Março de 2015, disponível no sítio do Ministério da Educação para consulta pública (http://dge.mec.pt/metascurriculares/index.php?s=directorio&pid=158)

[2] Ibid., pp. 5-6.

[3] "Reforçar a inscrição da matriz cultural no ensino do português".

[4] Ibid., p. 8.

[5] Cf. Carlos Reis (coord.), Programas de Português do Ensino Básico, Lisboa, Ministério da Educação, 2009.

[6] Refiro Lausberg, Heinrich (1967), Elementos de retórica literária, 2a ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

[7] Buescu, Helena C. et al., op.cit., que, doravante será referida pelas iniciais do título PMCPEB, Educação literária, 6º ano.

[8] PMCPEB, Educação literária, 9º ano.

[9] PMCPEB, Educação literária, 7º ano

[10] PMCPEB, Educação literária, 4º ano.

[11] Department of Education, English programmes of study: key stage 4. National curriculum in England, July 2014; English programmes of study: key stage 3, September 2013; English programmes of study: key stages 1 and 2. Livros em PDF obtidos em https://www.gov.uk/

Os key stages 1 e 2 correspondem ao 1º ciclo (até ao 6º ano, mas com início aos 5 anos) e o Key Stage 3 corresponde ao nosso 3º ciclo. O Key Stage 4 (10º e 11º ano) é preparação para os exames finais, GCSE ou para cursos vocacionais. Para seguir para o ensino superior, há ainda a Sixth form (ou como também já lhe chamam o Key Stage 5), os dois anos finais (12º e 13º) que preparam o aluno para um exame de nível mais elevado, o A-level. Muitos alunos vão diretamente do KS3 para o exame GCSE e daí para o A-level, dispensando o KS4.

[12] A documentação encontra-se num sítio do governo especializado em programas de ensino: http://www.education.gouv.fr/cid81/les-programmes.html#Français, Aqui também se pode adquirir o documento em forma de PDF: Ministère de l’Éducation nationale (2008). Programmes de l’enseignement de français. Programmes du collège. Bulletin officiel spécial n° 6 du 28 août 2008

[13] Programas disponíveis em http://www.nibis.de/nibis.php?menid=5240. Autores vários (2006), Kerncurriculum für das Gymnasium. Schuljahrgänge 5 -10. Deutsch. Hannover: Niedersächsisches Kultusministerium. Como se pode ver no sítio acima referido, este programa de 2006 mantém-se em vigor. Como pertence à Baixa Saxónia que é um estado de quase 8 milhões de habitantes, comparei-o com o de outros estados. Não encontrei diferenças relevantes. Isso deve-se, provavelmente, à existência de uma conferência federal regular dos ministros da cultura que tendem a unificar documentos oficiais da educação. Também não há diferenças relevantes entre o programa de alemão do Gymnasium e o da Hauptschule, ou o da Realschule, pelo menos no que diz respeito aos itens que pesquisámos. De resto, de entre os tipos de escola, o Gymnasium é o mais exigente.

[14] Graus que correspondem ao nosso 3º ciclo do ensino básico.

[15] http://www.education.gouv.fr/cid81/les-programmes.html#Français

[16] “Die folgenden Literaturempfehlungen sind in ihrer Gesamtheit nicht als verbindlicher Lesekanon zu

verstehen.” Traduzo: “As seguintes recomendações literárias não são para ser compreendidas na sua totalidade como um cânone de leitura obrigatória”.

[17] Cf. https://www.gov.uk/government/publications/national-curriculum-in-england-english-programmes-of-study/national-curriculum-in-england-english-programmes-of-study

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