A autonomia da educação literária
A expressão é de Luís C. Maia num artigo publicado a 16 de Maio no Público e faz-me lembrar o velho palavreado do estruturalismo althusseriano. Autonomia relativamente a quê? Ao resto do programa de Português? A nossa finalidade no ensino básico e secundário é tornar os jovens competentes na leitura, na oralidade e na escrita ou torná-los pessoas literariamente educadas? Onde é que começa e acaba cada uma destas coisas? Tem o ensino que estar ao serviço da Literatura ou é esta que se tem de sujeitar às finalidades educativas? Talvez este problema não exista, ou não interesse, mas a reivindicação de uma suposta "autonomia" suscita-o.
O texto literário sempre esteve no âmago da aula de Português. Nunca os textos do domínio prático e utilitário se sobrepuseram de alguma maneira à literatura.
O problema apontado ao programa e às metas não é afirmarem a existência dum capital literário comum que importa preservar no programa de Português. O que está em causa é a imposição duma escolha arbitrária, pois esse capital é constituído por um vasto conjunto de textos.
Tanto relativamente ao cânone, como relativamente aos programas de ensino da literatura, são possíveis várias posições: podemos estar ancorados na ideia de uma genealogia literária nacional fechada ou podemos considerar o carácter relativo desse conjunto e pôr sérias reservas à imposição programática de uma seleção de textos.
O que se critica ao programa de português é precisamente essa arrogância ultrapassada que consiste em achar-se no direito de definir escolhas que podiam ser da responsabilidade dos autores dos manuais, dos professores e das comunidades de leitores que eles dirigem. É nesse aspeto, nessa imposição, que este programa é caso único em toda a Europa. É que vai ao ponto não só de definir os textos como até partes, estrofes e capítulos de livros.
À parte essa lista, a educação literária não acrescenta nada de novo aos domínios da oralidade, da leitura e da escrita. Ao incluir conteúdos retóricos, sugere que eles são específicos da dita literatura. A metáfora, por exemplo, só é invocada nos conteúdos respeitantes à educação literária e aí aparece repetida de obra para obra como se temessem que os professores não a encontrem ao ler cada um desses textos com os seus alunos. De facto, a metáfora, tal como outros recursos expressivos fazem parte da retórica tanto do discurso oral como do escrito, tanto do literário como do não literário.
Há um problema lógico evidente nas partes do programa: oralidade, leitura e escrita são domínios interrelacionados que se referem a atividades que se fazem com a língua - ouvir, falar, ler e escrever - enquanto a educação literária escapa a essa divisão e intromete-se em todas elas. Se o essencial de qualquer programa de leitura é a literatura, o que é que a educação literária lhe deixa enquanto conteúdo? Se a escrita, tem por objetivo atingir um nível literário, o que lhe fica com a epecificidade da dita Educação Literária? Como se pode verificar, os géneros registados na leitura, também podem ser considerados como literários.
Mas, para este programa, no essencial, a educação literária é a referida lista obrigatória de textos. Por isso, a obrigatoriedade não justificada implica reações como a da Associação de Professores de Português a que reage Luís Maia:
Já na citada conferência afirmou, certamente baseada no estudo exaustivo das listas de obras recomendadas, que o PMCPES esqueceu o Plano Nacional de Leitura (PNL). Um pouco de atenção diz-nos que mais de quatro quintos das referências presentes no PMCPES estão no PNL.
Efetivamente, Luís Maia não compreendeu que o que está em causa é a liberdade de escolha. Não é as obras apontadas estarem ou não no PNL. É a imposição dessas obras impedir por completo a possibilidade do acesso às outras que lá estão.
Mesmo assumindo a perspetiva diacrónica da literatura portuguesa, a seleção de obras prima pela arbitrariedade:
- Porque é que A Ilustre Casa de Ramires é opção para Os Maias, sem haver nenhum valor consensual que as destaque no conjunto das obras do Eça? Não pode o professor escolher A cidade e as serras, O crime do padre Amaro, ou O Primo Basílio? O programa deveria simplesmente referir, "um romance do Eça" ou "um romance realista do século XIX" de acordo com o que se considera essencial à formação literária do jovem português.
- Na ansiedade de não deixar nada de fora, à falta de tempo, apontam-se uns capítulos de uma obra de Camilo. Não é uma violação grosseira da obra, no caso Amor de perdição?
- Porque é que o professor tem de optar entre duas peças de Gil Vicente que não incluem nem o Auto da Índia nem o Auto da Barca do Inferno, tanto mais que haverá alunos que não terão lido uma delas, pois estavam também em opção no 9º ano? Não seria mais fácil dizer: escolha de uma peça de Gil Vicente?
- Podemos também perguntar se tem de ser mesmo o sermão do Padre António Vieira selecionado; se, no contexto, se justifica a obrigatoriedade do Frei Luís de Sousa; se todos têm que ler a mesma narrativa de Herculano e em que é que se fundamenta a imposição de A abóboda. Porque é que se escolhem partes de As Viagens na Minha Terra?
- Em que é que se fundamenta a opção entre Manuel da Fonseca, Maria Judite de Carvalho ou Mário de Carvalho? Deverá haver uma razão objetiva. Não me passa pela cabeça que seja por causa das preferências dos autores do programa. Se não há nenhum fundamento, seria mais correto: um conto contemporâneo (a escolher duma lista bastante abundante).
- Também não se compreende a opção colocada ao Memorial do Convento. Seria, talvez, correto propor "Um romance de José Saramago" ou "Um romance português contenporâneo", abrindo a possibilidade de incluir Vergílio Ferreira, António Lobo Antunes, José Cardoso Pires ou outros (aceito que deveria haver uma lista de grandes romances contemporâneos)
O objetivo "Ler, interpretar e apreciar textos literários, portugueses e estrangeiros, de diferentes épocas e géneros literários" não implica necessariamente uma perspetiva histórico-literária portuguesa. Muito pelo contrário, ao lê-lo, veio-me à cabeça a ideia de "clássico". Ora o clássico é por definição o texto que ultrapassa os limites da sua época, embora possa requerer informação histórica para a sua leitura actual. Os textos da "história trágico-marítima" fazem sentido no contexto duma história especializada da literatura, mas dificilmente se podem considerar clássicos no sentido que se atribui por exemplo às peças de Gil Vicente.
Este programa de educação literária está feito do ponto de vista da história da literatura e inclui textos que só fazem sentido nessa metanarrativa e não por terem alguma coisa a dizer no percurso escolar de muitos jovens que terão o ensino secundário como o termo da sua escolaridade.