Polémica de província
No Público de 11/05/2016, António Cortez, dirige-se a Tiago Brandão, atual ministro da educação, numa carta em defesa das Metas Curriculares e do Acordo Ortográfico, entre outras coisas mais ou menos consensuais. O que lhe falta em argumentos na defesa dos seus pontos de vista, compensa-o António Cortez com uma marcante profusão adverbial e adjetival.
“Continuar provincianamente a alterar o que há de bom (o regresso da Literatura aos programas de Português) e insistir em ensinar um Acordo Ortográfico absolutamente absurdo"
Há provavelmente algum sentido nisso de fazer coisas provincianamente, mas alterar programas de ensino só o será se o for com a visão limitada de quem não conhece mais nada senão a sua província, seja ela o território de uma pequena nação ou o de um pequeno departamento universitário.
Quando se proclama o regresso da Literatura aos programas de Português, postula-se que ela esteve deles alguma vez ausente. Ora a maior parte do que os jovens leem no ensino básico e secundário em Portugal nunca foi outra coisa senão textos oriundos dessa coisa que se escreve aqui com maiúscula: Literatura. Portanto, Cortez quer com esse regresso assinalar outra coisa que foi de facto o que aconteceu: os novos programas de Português do ensino básico e secundário impuseram uma lista única de obras literárias que os professores terão de respeitar, do primeiro ao décimo segundo ano.
Provincianismo está sim em arrogar-se o direito de definir o que toda a gente tem que ler nas escolas. Tal pretensão não aparece em mais nenhum outro programa europeu de língua materna. Que sentido tem obrigar os alunos dos primeiros anos de escolaridade a lerem textos medíocres e desatualizados de Alves Redol, em detrimento da enorme quantidade de alternativas de qualidade superior? É uma imposição provinciana dum nome da grande literatura aos pequenos que se iniciam na leitura.
Porque têm os professores que optar entre a carta de Pero Vaz de Caminha e a Aia de Eça de Queiroz, entre outras alternativas díspares? Não há aí lógica histórico-literária que se perceba. Porque se propõe que os alunos do secundário leiam, imagine-se isto, partes de O amor de perdição do Camilo, uma novela bem pequena, quando têm que ler Os Maias do Eça por inteiro? Esta programação ao milímetro, a selecionar páginas dos textos, ofende a própria ideia de leitura e revela enorme arbitrariedade. Ficamos sem perceber se o tópico programático é o romance português do século XIX, o romance, o romantismo, o realismo ou se são essas mesmas páginas “sagradas”.
Porque não pode um professor, cansado de Os Maias, ler com os seus alunos outro grande romance do Eça? A mensagem provinciana que se lê aí é a seguinte: um jovem português literariamente educado terá que ter lido Os Maias e alguns capítulos do Amor de Perdição do Camilo.
O regresso da Literatura pode bem ser o fim da leitura literária propriamente dita. A imposição universal conduz à reificação do ato de leitura. Os alunos tenderão a procurar nos textos os significados que os professores lhes dão em vez de entrarem no jogo da autêntica leitura literária que é sempre existencial e pessoal. Não lhes faltarão ajudas a dispensar a leitura dos próprios textos.
Quanto ao absurdo do Acordo Ortográfico, teremos que rever o significado deste adjetivo. Teríamos, talvez, que inventar uma ortografia lógica, talvez ideográfica, para evitar os inconvenientes que Cortez enumera. De resto, o dossiê nunca esteve nas mãos do departamento da educação, mas, sim, quanto muito, no dos negócios estrangeiros.