Cortez, o apóstolo do cânone literário
António Carlos Cortez não podia deixar de acrescentar algumas palavrinhas da sua lavra à recente polémica sobre as leituras obrigatórias nos programas do ensino secundário. O seu artigo, "Epístola a Tiago e a João," que saiu no Público (14-08-2018), contesta a liberdade do professor escolher outro romance do Eça em alternativa a Os Maias, colocando-se assim contra as Aprendizagens Essenciais, em consulta pública.
Ao enunciar a sua posição, Cortez, tal como outros intervenientes nesta polémica, discorre sobre este assunto, como se estivesse em questão não a imposição de uma obra literária, mas, sim, a presença da literatura no programa, como se houvesse uma espécie de conflito entre a literatura e a linguística, numa generalização ilegítima da questão que motiva a sua ação. Destas intervenções, parece-me que podemos inferir que, para os seus autores:
- Os Maias valem mais do que todos os outros romances do Eça.
- Quem não leu Os Maias não sabe nada de literatura.
Trata-se de uma polémica equivocada pelo seguinte facto:
- Atualmente, já existe a possibilidade do professor escolher entre Os Maias e A ilustre casa de Ramires. Portanto, as Aprendizagens Essenciais limitam-se a abrir essa opção a outras obras do Eça.
Como poderemos ler os intervenientes que não tiveram essa realidade em consideração? Não estarão a defender um estado de coisas programático que, de facto, não existe?
Cortez e alguns outros intervenientes não respondem ao essencial, àquilo que deve ser discutido, em minha humilde opinião:
- A educação literária dos nossos jovens deve ser feita com um cânone de obras obrigatórias, iguais para todos, ou com a possibilidade de os professores escolherem as suas leituras de entre um conjunto de clássicos da nossa literatura?
Nesta segunda alternativa, Eça seria obrigatório, dado o seu peso na história do romance português, podendo, neste caso, apresentar-se uma lista dos romances mais relevantes do autor para os professores e os seus alunos poderem fazer as suas escolhas.
Cortez é evidentemente um defensor da primeira possibilidade, isto é, da ideia do catecismo nacional.
Em coerência com esta opção, o título do seu texto remete para o cânone sagrado da Bíblia ao referir as epístolas de Tiago e João, numa analogia que não se entende, pois, no cânone bíblico, Tiago e João são autores e não destinatários dessas cartas. Isto é, são epístolas de e não para Tiago e João. Sendo de Cortez para os Tiago e João identificados no texto, dói-me a arrogância exibida na pretensão de dar lições que, na realidade, não passam de generalidades, nuns casos, e de banalidades, noutros, para as quais, em nenhum momento, é apresentada qualquer análise, demonstração ou evidência.
Por exemplo:
"o interesse e a importância da análise gramatical não dispensa, antes exige, uma sensibilidade para a linguagem literária e, por essa via, uma forte consciência da História".
Para valer a pena dizer isto, seria necessário apresentar uma situação em que a análise gramatical exige conhecimento histórico e sensibilidade literária ou será que Cortez julga que é impossível analisar gramaticalmente qualquer frase sem apelar ao conhecimento literário?
Quando, mais à frente, afirma "a prioridade do texto literário" defendida por Aguiar e Silva, com a qual todos concordamos, perguntamo-nos em que é que a dita prioridade é prejudicada pela opção por outro romance do Eça? Será qualquer outro romance do Eça menos literário do que Os Maias?
Às tantas, já não é a questão de Os Maias, mas sim a da literatura em termos genéricos:
"A presença da literatura em situações de exame ou teste de avaliação não impede a compreensão dos temas e problemas que um enunciado complexo coloca aos alunos"
Faltaria aqui dizer-nos em que exame é que a literatura não esteve presente para podermos fazer a comparação e que relação tem isto com a maior ou menor abertura do cânone literário?
Depois, temos o que eu creio que Eça não faria: uma leitura moralista do incesto de Carlos e Eduarda. Considero essa inferência moralista uma menorização deste grande romance realista.
O que vejo é uma situação problemática: jovens amantes que descobrem que são irmãos. E, dentro dessa situação complexa, vemos como eles a enfrentam com os seus códigos morais. Eduarda acaba por achar o seu pecado perdoável por causa da sua ignorância. Carlos, tal como Édipo, via-se vítima de uma fatalidade em que o incesto não se tinha nunca apresentado como uma opção a tomar, mas, antes, como algo imposto pelo acaso, e revolta-se contra a situação que não quer aceitar. Não seria a informação de que a sua mulher era sua irmã que daria imediatamente origem a uma relação fraternal.
Essa, creio, é uma das diferenças entre o realismo e o romantismo ou mesmo o classicismo. Ao contrário de Édipo, Carlos não teve de cegar e Eduarda, ao contrário de Jocasta não teve de se matar, nem tiveram os amantes de se refugiar num convento como Madalena, a esposa de D.João de Portugal no Frei Luis de Sousa, e Manuel o seu segundo marido. Apenas acabam com uma relação socialmente inviável e prosseguem as suas vidas.
Do moralismo da sua leitura, Cortez toma alegoricamente o adjetivo incestuoso para o aplicar à relação entre Portugal e as suas colónias.
"A história do incesto entre Carlos e Maria Eduarda, alegoricamente lida, dá-nos a chave para reflectirmos sobre a incestuosa história entre Portugal e as colónias (Maria, filha de Maria Monforte, “a negreira”)"
Não será isto sobreinterpretação? Que tem o incesto a ver com o tráfico negreiro para que o adjetivo incestuoso possa captar alguma coisa da essência da relação entre Portugal e as terras de África? Sendo o tráfico odioso, que tem ele de incestuoso?
O incesto é um tabu civilizacional, uma interdição cultural generalizada, a escravatura uma prática social, infelizmente aceite em muitas partes do mundo. O tráfico de escravos africanos para a América, de que Portugal foi o triste iniciador, foi um elemento estruturante da relação entre os portugueses e os africanos e não um qualquer desvio incestuoso.
Até quase ao fim do século XIX, o tráfico era o negócio mais rentável. Portugal, apesar de ter proibido a escravatura, continuou a tolerar o tráfico para o Brasil e, quando quis pôr-se de acordo com a Inglaterra no que diz respeito à proibição, enfrentou dificuldades com a sua parca população branca africana que não dispensava a escravatura como forma de rentabilizar as suas atividades económicas, o que conduziu a formas disfarçadas de escravatura e de tráfico.
Que tem isto a ver com um incesto, ainda que alegórico?
É, ao tentar mostrar as vantagens didáticas do conteúdo social e histórico deste romance, que Cortez se refere ao tráfico de escravos, referência motivada pelo facto de Maria Monforte, a mãe de Carlos e de Eduarda, ser filha de um traficante de escravos.
Contudo, o interesse inegável de Os Maias não desvaloriza outras obras do Eça que tratam também do Portugal do século XIX. Por outro lado, a leitura repetida e a exaustão analítica, a que tem sido sujeita esta obra, torna difícil a sua leitura literária, pois muitos leitores não vão à procura da história e do prazer de a ler, mas apenas dos conteúdos de exame.
Devíamos hesitar com humildade antes de considerarmos que todo o cidadão português literariamente educado terá necessariamente que ter lido uma certa obra, sobretudo quando a relevância dessa escolha tem a ver com a importância desse texto na história da nossa literatura e não com o seu contributo estético e cognitivo para a compreensão de nós mesmos e da nossa realidade.
Creio que se pensarmos em termos do valor intrínseco dos textos para a formação do leitor e desistirmos de impor escolhas académicas, deixaremos de pensar em termos de um cânone e passaremos a valorizar os clássicos, isto é, os textos que superaram a prova do tempo e continuam a valer.
Se pensarmos desta maneira, daremos a última palavra a professores e alunos na escolha de obras dentro de um reportório válido. Nessa perspetiva, tanto Os Maias como O sentimento de um ocidental de Cesário Verde continuariam a ser obras extremamente válidas.