A dança das cadeiras
Era dia da escola ir ao teatro. Estava tudo acertado entre o Teatro, a escola e os professores. Infelizmente, já na bilheteira, houve um pequeno problema. Por erro da funcionária, duas turmas estavam a mais. - A culpa é minha, digo-o com toda a franqueza, tenho de me responsabilizar inteiramente pelo sucedido - repetiu a funcionária a sorrir, com tanta ênfase que parecia estar orgulhosa dessa capacidade de admitir os próprios erros. Essa franqueza, essa abertura, não deixava lugar para qualquer crítica. Tornava-a escusada, redundante, inútil, sem força para fazer o seu caminho contra um muro que se desvanecia por si próprio. Ela tinha dado baixa das duas turmas erradamente, por alegadas dificuldades de transporte. O certo é que as duas turmas apareceram com a casa já cheia, a abarrotar, com as que as substituíram. - O problema agora é como pôr os alunos sentadinhos lá dentro. Também não podemos mandar as turmas a mais embora, coitados, pois não têm culpa nenhuma do sucedido, e com cerca de trinta quilómetros de viagem a Lisboa, para nada!? Por isso, tenho solicitado aos professores, se não se importavam de ficar em pé durante o espectáculo. Atenção, não levem a mal, era só um pedido, não era uma exigência. Com cerca de dois professores por turma em pé, haveria lugar para os meninos se sentarem. Os professores são sempre a parte que pode dar um jeitinho, aquela onde ainda existe alguma folga. Os professores ali presentes compreenderam. Uns puseram em questão a medida em comentários laterais, mas não frontais. Certo, certíssimo, é que ninguém se escandalizou com a proposta. Outrora tínhamos um Professor muito bem sentado na Cadeira do Poder. Nesse tempo, os professores ganhavam mal, talvez menos do que hoje. Mas quando alguém falava deles era de "Senhor Professor" para cima. Alguns tinham outros títulos entre "professor" e o nome próprio, mas, para todos, era de professor com P maiúsculo que se tratava. A contrabalançar o montante irrisório do salário, estava o poder pedagógico ou académico e o prestígio da sabedoria, à imagem do Colega que, na sua Cadeira, se mostrava como símbolo da sapiência, do comedimento, da poupança e da austeridade. Um dia, o Senhor Professor caiu da Cadeira e, desde então, vingou o jogo das cadeiras, pois deixaram de estar bem claras as prioridades, as hierarquias que convêm ao acto de bem sentar. A sociedade democratizou-se, os professores descobriram-se e declararam-se trabalhadores, como todos os outros, multiplicaram-se por milhares, reivindicaram e bateram o pé. De "Senhor Professor" ou "Senhor Doutor", personagem tutelar, ao nível do médico ou do padre da aldeia, o professor evoluiu para o "setor", forma envergonhada de dizer a ausência de título adequado. Ali à entrada do teatro éramos o velho com a criança, sem saber o que fazer com o único lugar disponível no burro. Podia ser que pensassem que a idade de vários dos professores suportaria mal uma hora e meia em pé. Haveria que ter em atenção as dores nas costas e nas pernas dos que já ultrapassaram o auge da idade. Então poder-se-ia sugerir que alguns alunos se sentassem nos degraus do balcão ou da plateia, tão habituados estão a sentar-se em qualquer lugar. Mas não, são as crianças, que estão à nossa guarda, que têm a primazia, são elas que devem ter o lugar no burro. Os velhos que sigam a pé.
Publicado a 14 de Maio de 2015.