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Sem Rede

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

Sem Rede

11
Nov09

Ana e a árvore da vida

Redes

A árvore da vida (parte central) de Gustav Klimt

(extraído de lapislavra.wordpress.com)

Episódio 1 - Filha de Eva

Ana recordava-se do tempo em que o pai era um homem muito forte. Para ela, o mais forte do mundo. Mas agora ele estava sempre a queixar-se de dores em todo o corpo. Eram os músculos que latejavam quando pegava em alguma coisa mais pesada, coisa rara para um patriarca tão rico e poderoso, tão cheio de filhos, netos, bisnetos e bisnetos dos bisnetos em que muitos já tinham zarpado em busca de novas terras cumprindo o mandamento divino de encher a terra. Era também o fôlego que perdia quando se punha por mero prazer a ajudar nas lides do campo, as dores que surgiam nas costas e nas articulações quando se baixava.

Um dia, Ana ouvira-o confessar: "Começo a acreditar na palavra do Senhor quando me condenou, "és pó e em pó te tornarás". Muitas vezes me perguntava o que Ele queria dizer com isso. Quando o meu Abel morreu, creio ter compreendido o que era voltar a ser pó. Mas passaram-se anos e até agora ainda não vimos o que é isso. Virá um anjo ou outro homem matar-me? Agora estou a ver que não, é  simplesmente este desaparecer aos poucos, cabelos brancos, rugas, perda de força, dores... até desaparecermos".

Ana nascera muito depois da morte de Abel, uma espécie de santo que toda a gente venerava, o grande iniciador do culto de sacrificar cordeiros ao Senhor. Abel morrera havia já mais de seiscentos anos e Ana era uma jovem mulher de apenas cem anos. Caim, o irmão mais velho, o fraticida, prosperava muito longe dali, na Terra de Nod, onde fundara, com o primeiro filho, a cidade de Enoch, de que se contavam maravilhas.

Seth, com quase oitocentos anos, de aspecto tão velho como o pai, aparecia de vez em quando. Era também um grande patriarca, com as suas terras e as suas famílias. Na verdade, Adão, já tinha perdido a conta aos seus descendentes, eram dezenas ou, mesmo, centenas, de milhar. A sua comunidade era ela própria composta por alguns milhares. A de Seth, também, e já havia centenas delas espalhadas pela superfície da terra, fundadas por netos e bisnetos de Adão e dos seus filhos.

Última filha, Ana, fora sempre mimada pelos pais. Eva dizia: "Depois desta, o Senhor selou-me o ventre". Em pequena, era muito curiosa, queria saber tudo o que tinha acontecido. "Pai, como falavas com o Senhor no jardim? Via-lo?". "Não, era apenas a voz dele que nos entrava pelos ouvidos e nos dominava duma maneira que mais nada se podia pensar ou ver", respondia Adão e, quando explicava isto fazia uma cara de sofrimento e esforço, como se estivesse naquele momento a acontecer aquilo, mas logo a seguir, falava-lhe ao ouvido como se fosse Deus, mas fazendo-lhe cócegas com a barba: "Onde estás, Ana? Porque te escondes?". Ana ria-se e respondia: "Ouvi a tua voz, vi que estava nua e escondi-me". E enfiava logo a longa saia de lã, não fosse o Senhor surpreendê-la nuazinha.

"A serpente não rastejava antes de falar contigo, mãe?", perguntava a Eva. "Não sei, filha, a primeira vez que a vi estava enrolada na árvore". "Falava?", "Falou daquela vez". "Não achaste estranho?", "Tudo era estranho para mim, desde que apareci naquele sítio, feita duma costela do teu pai. Não tive a sorte de ter uma mãe que me ensinasse as coisas assim aos poucos desde pequenina, como tu". "O fruto era saboroso?", "Não me consigo lembrar do seu sabor. Só me lembro daquela voz horrenda, paralisante, a condenar-me "Com dor, darás à luz filhos"".

Havia já alguns anos que Ana se interessava por rapazes. Eva, como nunca fora rapariga, deliciava-se sempre com este momento, em que de meninas passavam a mulheres, apesar de já ter sido mãe dezenas de vezes.  "Não sei o que é conceber sem dores. Não sei o que é isso como castigo, pois não o imagino de outra maneira."

O mesmo dizia Adão a propósito do trabalho: "Sou rico. A minha família trabalha para mim e já tenho outros que vêm de longe e procuram a minha protecção. Chamam-me Pai, mas já perderam a linha que vai de mim até eles. Já há centenas de anos que não preciso de trabalhar, mas gosto de o fazer. Também não entendo esse castigo,  "maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida". Não! Bendita é esta terra que regamos com o nosso suor!". Às vezes, olhava para os campos a perder de vista e pensava: "Isto é melhor que as árvores do Éden".

Tudo era misterioso para Ana, a história do pai e da mãe eram os seus contos de fadas. Procurava compreender tudo e buscava as respostas às lacunas que lhe apareciam. O senhor Deus que falara com os pais e com os irmãos não se mostrava à toa. Era algo nebuloso para ela. Nunca o vira. Era quase como "no tempo em que os animais falavam", embora nesta história apenas a serpente o tenha feito. "Porque é que Deus já não fala com o pai?". Havia quem dissesse que Deus falava com o primo Enos, filho de Sete, que organizava grandes cerimónias religiosas com a sua família e a sua vizinhança e com Henoch, um homem de apenas trezentos anos, trisneto daquele.

Lembrava-se de quando pequena, com dez ou doze anos, ter ouvido uma conversa entre o pai e a mãe, na cama: "Como era, antes de eu aparecer?" "Sim, como fazias, sozinho?" A isto, Adão respondia com evasivas: "Não consigo recordar-me desse tempo. É como se tu tivesses estado sempre comigo, não me imagino sozinho". "Mas estiveste trinta anos sem mim, que é a diferença entre nós!", "Passaram muito depressa, pois não me lembro de quase nada".

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