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Sem Rede

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

Sem Rede

14
Nov09

Ana e a árvore da vida (2)

Redes

Episódio 1 - Filha de Eva (se ainda não o leu, clique aqui)

 

Episódio 2 - A visita de Henoch

Havia aquela preocupação de Ana que era, ao fim e ao cabo, a dura aprendizagem da morte de todos os jovens quando assistem ao fim das gerações que os antecedem, com a particularidade de ela e os seus irmãos serem os iniciadores dessa tradição. Adão não conseguia esconder o mal-estar que constantemente o invadia. Eram muitas as memórias perdidas que lhe faltavam em momentos decisivos, cada vez mais frequentes as caminhadas pelos rebanhos, pelas terras agrícolas e pelas cabanas da sua gente em que tinha que pedir para parar e sentar-se ofegante, deixando o agora inseparável cajado apoiado numa parede ou numa árvore. Eva suportava-lhe os queixumes, os resmungos num silêncio culpado, como se ela não tivesse as suas próprias dores e tivesse que ajudar o marido a carregar as suas.

Num desses dias, fora anunciada a chegada de Henoch por um mensageiro que o precedera um mês antes. As visitas mútuas dos grandes patriarcas tinham-se institucionalizado uns séculos antes. Eram uma oportunidade de forjar alianças com o casamento de jovens pertencentes a diferentes grupos familiares, já que a regra de casar fora da família natural se tinha generalizado.

Quando Henoch chegou, com a sua enorme caravana, o dia foi de festa. Adão recebeu-o efusivamente e conversou longamente com ele. "Henoch, são poucos os anos da tua vida, mas já tens alguns cabelos brancos. Já estás a morrer sem o saber." Henoch encolhia os ombros e sorria. "Sou forte e sinto-me bem. Quanto ao resto, que seja feita a vontade do Senhor". A Adão perpassou na face uma expressão de amargura: "Não tivesse eu transgredido, seria outra a herança da humanidade". Henoch tentou demovê-lo desses pensamentos, o envelhecimento, explicava-lhe, era para os homens a sua natureza, a única realidade que conheciam. O que interessava é que cada um estivesse de consciência tranquila perante o Senhor. Adão ainda insistiu no tema. "Sei que é pecado, mas às vezes penso naquela árvore que estava no meio do jardim. Se eu lhe tivesse deitado a mão antes de ser expulso". Henoch, olhou para ele com uma expressão dura: "Que Deus te perdoe, Adão..."

Ana escutara aquele pedaço de conversa e uma ideia começou a germinar: "Falam da árvore da vida. Se eu conseguisse o fruto, dá-lo-ia ao meu pai".

Enquanto Henoch ali esteve, houve festas, banquetes, orações ao Senhor e sacrifícios oficiados por Henoch que percebia que a Adão restavam apenas alguns anos e queria que ele acabasse a sua vida na "graça do Senhor". Dos filhos de Henoch, o primogénito, Metusalém já era, ele próprio, um patriarca e vivia longe do pai. Vieram vários filhos com ele, alguns muito jovens. Dan, que tinha mais ou menos a idade de Ana, rapidamente se tornou seu amigo. Era forte, muito musculoso, cabelos longos, uns olhos negros com umas espessas sobrancelhas, que pareciam ler-lhe a alma quando nos dela os fixava.  Henoch e Adão observaram os dois em animadas conversas e trocaram um olhar entre si que foi como se tivessem assinado um contrato.

Quando se fez boa a ocasião, Adão falou com a filha: "Ana estás na idade de casar. Vimos que te dás com Dan. Vamos casar-vos antes de Henoch regressar a sua casa, pois irás com Dan". Ana ficou surpreendida com esta decisão, mas não teve coragem de argumentar, por causa do tom solene do pai que ela já ouvira dezenas de vezes com outros irmãos. Ficou magoada por o pai a deixar ir assim embora. Não podia revelar o que lhe ia na alma: "Não casaria antes do pai morrer". Mas só baixou a cabeça. Foi como se tivesse dito "sim".

Dan não cabia em si de contente. Sentia-se honrado por casar com uma filha do "Pai Adão". Ainda por cima, lindíssima, cabelos pretos, pele muito branca, com olhos verdes, elegante e atlética.

Ana começou a perguntar a toda gente "onde era o Éden".  Invariavelmente, todos lhe diziam que o caminho se tinha perdido. Já ninguém sabia lá ir. Mesmo Adão e Eva ficavam confusos com a direcção para onde se deviam dirigir. Não se recordavam e discutiam quando tinham que dizer se tinham vindo de poente ou de nascente, de norte ou sul, ou de algum ponto intermédio. Henoch disse que era pecado querer saber e que já muitos tinham desaparecido a tentar lá chegar.

Apenas Dan, querendo exibir os seus conhecimentos, lhe dissera algo mais. Estava muito nervoso e combinou encontrar-se com ela num sítio do campo, longe da casa de Adão onde poderiam ser surpreendidos por Henoch ou Adão. "Conheço um homem que tentou lá chegar,  arrependeu-se a tempo e voltou para trás. Viu os querubins. Ele contou-me a sua história. Sei que é no sentido do pôr-do-sol. Adão e Eva devem ter saído pelo lado nascente".

Conversaram longamente abraçados. "Estou preparada para te amar, mas não para ir contigo e Henoch. Ama-me agora porque nunca mais me verás". Acabou assim este episódio: sob um céu mesopotâmico de lua-cheia, dois corpos amantes entrelaçados, com a conivência duma primeva seara de cevada.

 

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