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Sem Rede

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

Sem Rede

20
Nov09

Ana e a árvore da vida (3)

Redes

Episódio 1 - Filha de Eva (se ainda não o leu, clique aqui)

Episódio 2 - A visita de Henoch (se ainda não o leu, clique aqui)

Episódio 3 - O Éden revisitado

Uma dor no peito repentina e aguda clamou pela mão de Dan que logo acorreu e se encerrou sobre o grosso cajado do velho Adão. Os olhos entreabriram-se a custo e era um velho zangado, recortado sobre o azul do céu que Dan via na origem da sua dor.

"Que fazes aqui a dormir ao relento? Foges aos rituais de Hennoch? Vai para ao pé dos outros. Vamos começar a colheita".

Adão, sem esperar qualquer resposta, virou-se para um jovem que o acompanhava, e pediu esclarecimentos num tom mais baixo: "Sabes quem é este rapaz?". "Não sabes, pai? É Dan, o noivo da Ana", respondeu o outro, ao mesmo tempo que se afastavam.

Nesta altura, já Ana ia longe. As aldeias de casas de tijolo das gentes de Adão viam-se já muito pequenas no horizonte. Pensava em Dan. Tinha pena de o deixar só, perdido. Dera-lhe em segredo o propósito da sua viagem e ele prometera nada revelar a ninguém. Entre tantos jovens a casar, raparigas que vão e raparigas que vêm, Henoch preocupado com o ritual, Adão a confundir tudo, sem o protesto de Dan, Ana esperava que ninguém desse pela falta dela. Apenas Eva entenderia a sua ausência como recusa e, com a solidariedade de mulher que não teve escolha, permaneceria em silêncio. Saíra ainda de noite, para ter a certeza de que daria as costas ao nascer do Sol quando chegasse a uma zona desconhecida.

A tiracolo, levava a sua grande saca de recolecção, cheia de frutos e pães que retirara dos preparativos para a festa e um odre que enchia de água sempre que podia. Além da saia de lã comprida, levava consigo uma pesada manta, para se proteger durante a noite. Felizmente a época era boa. As árvores e arbustos dos caminhos estavam cheias de frutos e bagas doces, havia searas à espera de colheita de onde poderia roubar grãos que teria que mastigar assim mesmo, já que não disporia da sua pedra de moer para fazer farinha e preparar uma papa ou mesmo cozer pão. Não, ela sabia que, para sobreviver nesta aventura, teria que saber comer como o gado ou os animais selvagens.

Andou dias assim. Entretanto, a nossa caminhante viu com apreensão o fim das terras férteis, demasidado distantes dos rios e dos canais que os agricultores abriam. Racionou a água que bebia às gotinhas. Procurava durante o dia um abrigo para dormir e continuava a caminhada um pouco antes do pôr-do-sol. Apanhava pequenos animais como lagartos e gafanhotos que lhe repunham a força necessária para continuar. Os dias passavam nisto e, quando, por vezes, se anunciava o fim do deserto, verificava depois que tudo não passava de meia dúzia de árvores e dum charco de água e que mais deserto penoso apareceria à frente para prosseguir.

Ana já andava perdida, como que sonâmbula, quando, ao chegar ao ponto mais alto duma montanha do deserto, foi surpreendida por um espectáculo inigualável: um vale verdejante no cruzamento de quatro braços de um rio. "Se isto não for o Éden que mais poderá ser?"

Quando desceu e se aproximou do vale, percebeu que o acesso não seria fácil. Escondeu as suas magras posses debaixo dumas pedras na proximidade do rio. "Lembrou-se da história da nudez no Éden e manteve a saia enrolada à cintura para poder nadar, coisa que aprendera nos pequenos canais perto de casa, não fosse o Senhor surpreendê-la nua no jardim". Tentou entrar num ângulo onde se cruzavam os dois braços de água. "Será este o lado nascente, por onde eles saíram?". Altos canaviais e arbustos espinhosos interpunham-se entre ela e o rio de águas limpas. Serviu-se da faca de obsidiana que levava consigo para cortar pequanos ramos e conseguiu ultrapassar a barreira e lançar-se à água. 

Assim que mergulhou e viu o fundo do rio, o espectáculo deixou-a horrorizada: dezenas e dezenas de esqueletos humanos presos no fundo lodoso despontavam, ora uma caveira, ora uma mão que parecia pedir socorro, ora uns pés que pareciam querer mover-se em direcção à superfície. "Será que ficarei aqui como eles?"

Conseguiu chegar a terra. Assim que se apeou da água, desenrolou a saia, espremeu-a, sempre a olhar à volta, e vestiu-a. Quanto à parte de cima, paciência! O xaile ficara junto da manta. Receava avançar: "Aqui deveriam estar os querubins". Viam-se apenas alguns animais, aqui e ali. Parecia apenas comum natureza verdejante, mas selvagem. Ana entrou por ali adentro. Era um vale muito maior do que parecia visto do monte. Muitas árvores carregadas de fruta que Ana, faminta, não deixou de aproveitar.

Meteu-se por um emaranhado de arbustos que lhe parecia ir dar a uma clareira central. Sentiu-se presa. Afastou com as mãos os ramos para pôr a cabeça e ver aonde aquilo ia dar. Um barulho de cortar o ar, misturado com cheiro a enxofre, levou-a a recolher-se e a encolher-se toda para dentro do arbusto. "Meu Deus, ia ficando sem cabeça". Ficou a observar por entre os ramos. O estranho objecto voltou e Ana reconheceu-o das histórias de infância: "A espada flamejante!". Ela continuava numa circunferência imutável à volta duma grande árvore, sem convicção a dar golpes em inimigos imaginários, como se estes também se dispusessem num círculo perfeito à volta da árvore.

Ana depressa compreendeu que poderia aproximar-se e observar melhor a árvore. Bastava penetrar no círculo imaginário, logo a seguir a uma passagem da espada. Cortou os ramos necessários e ficou com uma abertura suficiente para passar. Esperou que a espada passasse e correu na direcção da árvore. Ofegante sentou-se apoiada no tronco, à espera.

"Será que a espada sai da sua rota para me matar?" Preparada para fugir ao menor sinal, Ana nem conseguia olhar para a árvore. Mas não. Ela continuava no mesmo caminho, "Mas, espera aí", pensou Ana, "agora está a andar mais devagar". Até que por fim parou, esfumou-se e, nesse ponto, apareceu um homem. Ana olhava-o da árvore, isto é, do centro do círculo, o homem a aparecer no ponto em que se esfumava a espada, a cerca de cem metros de distância.

Durante uns minutos, o homem permaneceu imóvel, como se estivesse preso àquele lugar. Então, começou a avançar lentamente na direcção de Ana que, paralisada pelo medo, mantinha-se sentada com as costas apoiadas na árvore. À medida que se aproximava, Ana observava-o. Era extremamente belo. Trazia uma saia comprida de lã e vinha em tronco nu. Musculado, alto, olhos azuis e cabelos cor-de-ouro.

Assim que chegou perto, tapou os olhos com a mão esquerda e com a direita apontou para Ana: "Por favor, levanta-te e tapa-te". Nas mãos de Ana, apareceu o xaile que deixara na outra margem. "Tu és um querubin?", perguntou Ana, a ganhar confiança. "Sim". "Então, porque não tens asas?". "Sou Haziel. Este é o aspecto que tenho perante os seres humanos".

"Que me vais fazer?", perguntou Ana. "Nada". "Não me impedes de tirar o fruto da árvore?". "Não, serve-te".

Foi então que Ana olhou para a árvore. Estava ressequida e não tinha qualquer fruto, apenas umas folhas de um verde acastanhado. "Que lhe aconteceu?", "Ficou assim desde que a primeira mulher veio cá e comeu frutos e deu-os aos amigos".

"A minha mãe nunca cá voltou", respondeu Ana. "Ah, tu és uma filha de Eva! Não, referia-me a Lilith". "Lilith?" "Quando ela veio, eu fiquei paralisado, incapaz de me mexer por causa da beleza dela". "E os querubins do lado nascente?". "Oh, esses desapareceram muito antes da visita de Lilith. Foram atrás das filhas dos homens". "Mas não foi Eva, a primeira?", "Não! O senhor criou os animais, macho e fémea, e o Homem também. Nem a mulher precede o homem nem o contrário. Um não existe sem o outro. Só criou Eva da costela de Adão porque a primeira só estava com Adão quando lhe apetecia e não procriava dele. Depois, fugiu do Éden. Alguns anjos que tinham a tarefa de a  trazer para o Jardim foram seduzidos por ela e perderam-se. E a mim ia-me acontecendo o mesmo. Deixei-a comer o fruto como se estivesse hipnotizado a vê-la. Quando reagi, já ela se tinha ido embora e agora volto para o Senhor. Já não há nada aqui a fazer. Se queres saber mais sobre isto, fala com Lilith. Consta que está na Terra de Nod. Mas aviso-te que os perigos são maiores do que a própria morte de que queres fugir". "Não era para mim, era para o meu pai", ia Ana dizendo, enquanto Haziel desaparecia no ar agora sim, com umas belas asas.

 

Imagens extraídas de "Lilith", Wikipedia. A primeira, uma gravura de John Colier do final do sécul XIX, a segunda, um relevo mesopotâmico do séc. XX a.e.c..

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