O cânone escolar ou o regresso do livro único
A revolução de abril de 1974 consagrou o fim do livro único nas escolas portuguesas, por isso, a recente imposição de um cânone literário pelas Metas curriculares deveria ser objeto de reflexão e discussão. Será que estamos a regressar a um novo mundo a preto e branco, em que ao professor não resta outra possibilidade que não a de ler com os seus alunos os mesmos textos que todos os outros leem sincronizadamente pelo país fora?
A imposição de um cânone pode ser legitimada pela história literária ou por necessidades de ordem didática e pedagógica. Os textos selecionados para a escola têm também que obedecer a critérios de qualidade literária e de adequação ao público escolar, no que respeita à idade, valores, conhecimentos e experiências de vida requeridas para que a leitura seja significativa.
Há com certeza autores e obras incontornáveis, como é o caso de Luís de Camões e de Os Lusíadas. Será também o caso de Eça de Queirós, mas já não estou certo de que seja o caso de Os Maias. Isto é, podemos perguntar se não há outros romances de Eça que tenham um valor literário e um significado histórico equivalente a Os Maias. Se a resposta for afirmativa, porque impomos aos professores esse romance em particular? Não estaremos perante um abuso de poder de alguns autores de programas escolares? A decisão de escolher um certo texto é sempre feita em detrimento de outros que ficam severamente prejudicados por não serem lidos com a mesma frequência e intensidade.
O atual ministro da educação antes de o ser pugnava por programas escolares mais curtos, neutros no que respeita às correntes pedagógicas. Ora o que vemos nas Metas é não só a imposição de preceitos didáticos, mas também de objetos de leitura que se constituem como parte do programa e não como meios de desenvolver essa atividade.
Essa imposição começa logo no 1º ano:
- Por exemplo, "Corre, Corre, Cabacinha” de Alice Vieira in O Menino da Lua e Corre, Corre, Cabacinha. Porque razão é escolhido este conto em particular e porque a versão de Alice Vieira quando existe, por exemplo, a versão de Eva Meijuto com ilustração de André Letria?
- O que é que o texto de Alves Redol, A Flor Vai Ver o Mar tem de único, de tal modo que se torne obrigatório no 1º ano?
- Porque é que o professor tem de escolher entre duas obras específicas de António Torrado (O Coelhinho Branco e Vamos Contar um Segredo e outra História?
- Embora os poemas de Eugénio de Andrade, Aquela Nuvem e outras e os da Matilde Rosa Araújo de O Livro da Tila sejam de grande valor literário, é discutível a sua inclusão como objetos de trabalho obrigatórios, pois há outros textos concorrentes do mesmo nível.
- A seleção de trava-línguas e lengalengas da Luísa Ducla Soares é apenas uma de entre várias. Porque se impõe uma delas?
- O mesmo se pode dizer dos contos de Maria Alberta Menéres.
- Que dizer da opção entre Beatrix Potter e Elizabeth Shaw?
A justificação desta seleção é de um conservadorismo atroz: "a escola, a fim de não reproduzir diferenças socioculturais exteriores, assume um currículo mínimo comum de obras literárias de referência para todos os alunos que frequentam o Ensino Básico." Podemo-nos perguntar que diferenças socioculturais vai resolver esta abstrusa lista de obras literárias que vai do 1º ao 9º ano. Eu não consigo vislumbrar nenhumas!
Uma lista obrigatória de obras literárias não serve nem a leitura nem a literatura. Muitos alunos, em vez de lerem os textos originais, decoram leituras feitas por outros, a fim de se prepararem para testes e exames e têm sucesso com essa estratégia - o que fazem com Os Maias, por exemplo.
A defesa da qualidade da leitura deve ser feita com um mínimo de regulamentação. O que aparece aqui é a mera imposição de opções pessoais dos autores das Metas.
O cânone faz-se como o Plano Nacional de Leitura tem feito, selecionando as obras que têm qualidade literária, classificando-as de acordo com a idade e os graus escolares. Cabe às comunidades de leitores escolher os textos, de acordo com os programas de português, mas as obras, só em casos de absoluta e indiscutível relevância histórica, literária e cultural, é que devem fazer parte dos programas.
Assim, no primeiro ano, os alunos devem ouvir ler e começar a ler textos que chamem a atenção para o som e a sua representação gráfica, como rimas e lengalengas tradicionais. Devem ouvir ler contos tradicionais portugueses, mas não cabe às autoridades educativas legislar sobre os livros onde os professores irão buscar esses contos.
O programa de Português, ainda em vigor, caracteriza os textos que devem ser lidos no 1º ciclo e remete a escolha para a lista do Plano Nacional de Leitura deixando a cada professor essas escolhas.
Estamos perante um evidente regresso ao livro único.