Congresso das esquerdas - uma "fronda" da classe política
Soares a dirigir a classe política contra o governo.
A minha formação marxista obriga-me a pensar objetivamente os fenómenos sociais.
Sublinho "objetivamente" para fugir a qualquer juízo de intenção. As motivações individuais variam com certeza. Só cada um, o seu padre ou o seu psicanalista pode falar sobre elas.
O que me interessa aqui é procurar as condições que explicam fenómenos de massas, ainda que estas sejam muito perfumadas. O que está aqui em causa é compreender porque é que tanta gente se une contra um governo que para muitos deveria ser o seu.
Junto com Mário Soares, estiveram muitas pessoas que estão longe de se sentirem à vontade com o punho erguido duma rosa demasiado vermelha.
O fenómeno da oposição ao governo do PSD tem indícios muito anteriores. Bem sabemos que é comum haver "enfants terribles" daqueles que, assim que saem de cena, começam a estragar o jogo dos que lá ficam - Manuel Maria Carrilho no PS, por exemplo. Mas aqui há algo mais.
Vimos Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Pacheco Pereira, António Capucho entre vários outros.
Do lado do PS, que deveria também estar comprometido com a Troika, não faltam exemplos de pessoas que tomam a iniciativa em prejuízo da direção do partido.
O que é que há de objetivo nesta onda? Primeira questão - a que classe social pertencem estas pessoas. Sim, se há luta de classes, a qual pertencem elas? O Marx do Manifesto... acreditava que o proletariado havia de integrar a maior parte dos pequeno-burgueses que seriam proletarizados para a batalha final contra a única classe que ficaria do outro lado, a burguesia. Esta análise simplória ignora que o exercício do poder gera uma classe com interesses próprios independentes dos da classe que diz servir. Staline e os seus correligionários, Molotov, Beria, Brejnev, etc... estavam muito longe de poder ser considerados proletários. A ditadura era mais sobre do que do proletariado.
Para compreender o que une objectivamente essas pessoas temos que compreender o que eles são - a classe política - e o que os une é terem também perdido, enquanto políticos, rendimentos, quer como assalariados, quer como subsidiados (através de fundações, por exemplo), quer como reformados.
Isso é explícito em alguns testemunhos - por exemplo, de Manuela Ferreira Leite e de Bagão Félix e, mais ingenuamente, de Cavaco Silva.
Quer isto dizer que o governo está contra a classe política, a sua própria classe? O governo tenta legislar de um modo universal ignorando as categorias que permitiriam salvaguardar os políticos, mas não o consegue fazer sempre, por medo ou por interesse próprio, de classe. As exceções que faziam dos políticos um grupo à parte só há pouco começaram a ser desmanteladas. Assim o exigia a dureza das medidas impostas aos outros portugueses. A prova que temem tanto os políticos quanto os polícias está numa notícia do Expresso de ontem, "Maioria alivia cortes aos políticos", em que o património imobiliário deixa de contar como critério para a suspensão da subvenção vitalícia. Alguns dos senhores em pé de guerra estão entre estes beneficiários da dita subvenção.
No que diz respeito a viver à custa do Estado, os políticos estão como uma boa parte dos portugueses, por isso, se não o fosse ideologicamente, seriam, pelo menos, materialmente solidários com os outros funcionários. Tal como na "fronda" francesa do século XVII, em que os nobres se revoltaram contra o rei e o seu primeiro-ministro, também aqui temos uma parte do Estado contra ele próprio, os descontentes a arrastar as massas.
Nesse sentido, é perfeitamente legítimo ler a apreensão de Soares quanto à violência, como um incitamento. Como estou aqui em baixo da pirâmide estatal, dá vontade de perguntar: "Boa, Mário Soares, por onde havemos de começar para fazer a revolução ou para a salvar? Como vamos apear aqueles que lá estão?"
Mas será que esta "fronda" nos resolve algum problema, indica algum caminho novo?
Foi com pouca admiração que vi os deputados do PS revoltarem-se contra medidas que eles próprios tinham inscrito no PEC 4. Poucas coisas se parecem tanto uma com a outra como o PSD e o PS na oposição. O primeiro fez cair um governo para fazer o mesmo, o segundo também quer que o atual caia para não fazer diferente.