A literatura contra a leitura
Já tratei aqui do canone escolar, a propósito das metas curriculares. Resumo a minha opinião no seguinte: onde temos valores literários equivalentes, deve caber ao professor e aos seus alunos a responsabilidade da escolha. Quando o texto é uma obra de valor literário imcomparável, como é o caso de Os Lusíadas, é aceitável que o programa a imponha.
Com as metas e com o programa do secundário, viu-se em ação um outro critério que pode ser interpretado como o regresso do livro único. Registam-se não só títulos, mas também as próprias edições, de obras impostas aos alunos do básico e do secundário.
Tive curiosidade em ver como se fazia isto noutros países. Começarei pela França. Num documento governamental que trata do programa do secundário, quanto ao objeto de ensino do francês, decide-se o seguinte:
- Para o romance e a novela do século XIX (naturalismo e realismo), propõe-se "Un roman ou un recueil de nouvelles du XIXème siècle, au choix du professeur".
- Para o século XVII (classicismo), "une tragédie ou une comédie classique, au choix du professeur."
- Para a poesia dos séculos XIX e XX, "Un recueil ou une partie substantielle d'un recueil de poèmes, en vers ou en prose, au choix du professeur."
- Para estudar os géneros e formas de argumentação dos seéculos XIX e XX, "un texte long ou un ensemble de textes ayant une forte unité : chapitre de roman, livre de fables, recueil de satires, conte philosophique, essai ou partie d'essai, au choix du professeur."
A expressão mais repetida é precisamente esta: "au choix du professeur"
Neste programa, definem-se critérios para o professor seleccionar textos que contextualizam historicamente as obras que seleciona. As categorias empregues não referem generalizações histórico-literárias, sempre discutíveis, pois correm o risco de inserir os textos muito arrumadinhos numa meta-narrativa que conduzem a uma leitura meramente ilustrativa ou exemplificativa dos textos. Trata-se, pelo contrário de categorias analíticas.
Exemplifico: "Un ou deux groupements de textes permettant d'élargir et de structurer la culture littéraire des élèves, en les incitant à problématiser leur réflexion en relation avec l'objet d'étude concerné."
No nosso programa, são considerados como conteúdos tanto os textos literários como generalizações histórico-literárias. Por exemplo, os sonetos de camões já estão "lidos" no programa sob os tópicos:
A reflexão sobre a vida pessoal.
O tema do desconcerto.
O tema da mudança.
A leitura escolar, com este programa, tenderá a ficar reduzida ao reconhecimento destes tópicos nos textos. É aqui que me parece que o programa se antecipa à leitura que os alunos poderão fazer. Os nossos jovens nem terão que procurar outras palavras. Trata-se apenas de reconhecer pr exemplo que um certo poema corresponde ao tema do desconcerto e da mudança.
Será que assim aprendemos a dar sentido, a descobrir sentidos ancorados nos textos quando o programa já fez esse trabalho? Não se tratará só de reconhecer as etiquetas?
O programa dá-nos pois os textos lidos de tal maneira que muitos alunos dispensarão a leitura.
Site consultado: