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Sem Rede

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

Sem Rede

09
Nov17

Desventuras de Maria do Carmo Vieira

Redes

        Qualquer pessoa que se interesse pelo ensino do Português e que de alguma maneira participe em iniciativas oficiais - como será seu dever profissional - ao ler este artigo[1] de Maria do Carmo Vieira, pergunta-se se não será um dos atingidos pelas suas palavras. Começa logo no primeiro parágrafo por acusar os seus alvos de fazerem uma imposição que quebra a relação com o passado no ensino do Português. Que imposição? Para o descobrir, temos de continuar a ler. Mas ficamos logo a saber quem são para ela os agentes dessa ação: “aventureiros que se movimentam nos corredores do Ministério da Educação” que se caraterizam pelo oportunismo, arrogância, pobreza espiritual e cultural. Além disso, são aqueles que se vendem por um prato de lentilhas.

        Este recurso retórico à história de Esaú e Jacó leva-nos a indagar o significado que se descortina sob o tropo da primogenitura[2] e quem de entre os aventureiros terá vendido essa preciosidade em troca de que lentilhas. Serão os mesmos que se põem em bicos de pés? São todos os aventureiros dos corredores ou só alguns de entre eles? Resumindo: têm todos tudo de mal ou cada um deles tem o seu defeito (como todos nós, pecadores, enfim)?

      É no segundo parágrafo que encontramos um dos aventureiros, Paulo Feytor Pinto, e, sim, talvez, a referida imposição (que - lembram-se? - “quebra a relação com o passado”) que seria tirar a literatura dos programas de português em troca de textos funcionais, informativos e utilitários. Evidentemente, não podemos comentar o relato de conversas alheias, mas estou certo do seguinte:

  • Nenhum linguista considera a literatura “um tipo de texto” nem o “Relatório sobre O Ensino e a Aprendizagem do Português na Transição do Milénio” (2002) propõe a literatura como tal.
  • Nesse texto, apenas se alerta para a importância de considerar as tipologias textuais na didática do português, afirmando apenas uma tendência internacional dominante nas disciplinas de língua materna.
  • O relatório acima referido, assim como o documento que o precedeu (relatório preliminar), propõe que os professores estejam familiarizados com a investigação tanto no domínio da linguística como no domínio da literatura.
  • Há uma preocupação no referido relatório com a leitura literária propondo-se que os alunos mais novos tenham acesso a adaptações de clássicos[3].

        É sintomático do estreito dogmatismo de Maria do Carmo Vieira que passe com toda a ligeireza sobre as queixas aos programas de Português assinaladas no dito relatório e que eram muito comuns há alguns anos atrás, segundo as quais os alunos não exercitavam satisfatoriamente as competências de expressão oral, leitura e escrita requeridas pela sociedade contemporânea. Para ela, a única coisa que importa é a Literatura, assim escrita com maiúscula, como se esta palavra convocasse um referente unívoco, cujos contornos teriam o acordo de toda a gente.

        Quando ela diz que “A Literatura ficaria reservada só para os alunos de Humanidades” está a falar de uma conceção que separa a disciplina de língua da disciplina de literatura no secundário e não da exclusão da leitura literária do programa de português do secundário. Essa ideia não aparece no relatório, mas é coerente com a preocupação com as competências linguísticas, referidas acima, dos alunos que concluíam estudos, ou que prosseguiam estudos em áreas onde eram requeridos melhores desempenhos na leitura e na escrita de textos dos domínios da política, da ciência, da tecnologia, etc.

        Para avaliar a referida separação, sugiro ao leitor que compare os dois programas - o de Português e o de Literatura[4]. Talvez a sua conclusão seja próxima da minha. O programa de Literatura de 2001 é mais livre, dá mais hipóteses de escolha de textos ao professor. Pelo contrário, o programa de Português de 2014 é mais erudito, no sentido em que impõe textos cuja leitura só faz sentido no plano da história da literatura e é, sim, mais impositivo, pois seleciona não só obras mas também excertos, para utilizarmos aqui com propriedade o termo “imposição”. A verdade é que o programa de Português de 2014 invadiu o de Literatura de 2001, criando muitas zonas de sobreposição.

        Maria do Carmo Vieira opõe gramática tradicional a gramática informada pela linguística. Porque haveria a gramática escolar de ficar incólume perante as críticas que linguistas e gramáticos há muito lhe fazem? A chamada TLEBS foi apenas um movimento no sentido de resolver um atraso no nosso ensino da gramática consistente com o que aconteceu noutros países da Europa. Tinha de facto havido uma tentativa frustrada com a sintaxe reduzida às chamadas “árvores de frase” nos anos 80. Depois, houve um regresso ao tradicionalismo, dada a nossa (de professores que somos) deficiente formação linguística e gramatical. Será o desconhecimento dos paradigmas do ensino da gramática nos países ocidentais, assim como dos avanços da linguística, que leva MCV a dizer estas coisas ou simplesmente a má fé?

        A estes problemas, acrescenta, como não podia deixar de ser o AO90. Como se todos os que são contra o AO estivessem necessariamente arregimentados ao seu lado contra todos os outros “males” que, na sua conceção, prejudicam o ensino do português. Implicitamente sugere uma relação de causa-efeito entre o AO e a aprendizagem da leitura inicial. Assim, os alunos do 2º ano falhariam na aprendizagem da leitura por causa do AO. Aponta como problema os alunos passarem para o 2º ano sem saberem ler. Portanto, sugere o aumento do insucesso escolar como parte da solução. Podemos perguntar-lhe assim: MCV, em que estudos ou experiências é que se baseia para sugerir que o facto da reprovação dos alunos no 1º ano iria melhorar o seu sucesso na aprendizagem da leitura? Tem alguma prova de que o AO tem relação com o dito insucesso?

        Esta atitude da MCV, que já estava presente no seu ensaio, O ensino do Português[5], não contribui para nada por ser um discurso demasiado genérico, basear-se num ethos tradicionalista que nos sugere que toda a mudança é nefasta e ser primário, ao sugerir que estas mudanças, contra as quais se coloca, são causadas por malfeitores que aponta como cúmplices, acabando por pôr muita gente no seu banco dos réus.

        O que tem acontecido no ensino do Português é um processo de evolução que está documentado e é fácil de evidenciar. Por exemplo, no programa do secundário de 2007, continua a haver leitura literária com respeito por um cânone historicamente constituído, isto é, não passou tudo só para textos utilitários, coisa que nunca aconteceu, enquanto na reformulação de 2014, continua a haver descritores relativos aos tipos de texto. Se compararmos o programa do ensino básico de 2015 com o de 2009, encontraremos também muitas continuidades. Eu tenho apresentado a minha discordância relativamente  à imposição de muitos textos literários, mas isso é o que precisamos de fazer, confrontar posições. Mesmo que a retórica utilizada não seja necessariamente amigável, não chegamos ao insulto, nem ignoramos os méritos alheios nem as suas razões.

        MCV afasta toda a gente. Não argumenta, não apresenta dados, fica apenas a palavra acusadora dela sem as razões que lhe poderiam valer. É insultuosa, não se aproxima daqueles que critica para pesar os seus argumentos. Põe-se numa atitude qual Jesus contra os vendilhões do templo: anti-AO90, anti-TLEBS, anti-”facilitismo”, anti-”tipologias textuais” e anti-Etc.

        Precisamos de ver como os outros resolveram problemas comuns, de ver o que a literatura e a experiência nacional e internacional diz sobre os temas que estão envolvidos no nosso trabalho e, humildemente, aceitar mudar de opinião. Enfim, estamos numa área onde impera a discussão para a qual só podemos convidar todos os interessados.        

 


[1] “Desventuras do ensino da Língua Portuguesa”, Público, 3 de Novembro

[2] Esaú, irmão de Jacó, deu-lhe o direito de ser o mais velho em troca de um prato de lentilhas. Na verdade, Esaú era apenas o gémeo que tinha saído primeiro no parto. Bíblia, Génesis, capítulo 25, versículos 29-34.

[3] APP (2002), O Ensino e a Aprendizagem do Português na Transição do Milénio, pp. 71-72. Ver também na página da APP.

Veja as seguintes citações do relatório:

“O professor precisa do que a investigação nas áreas da linguística ou da literatura põe à sua disposição tendo, no entanto, o cuidado de tudo fazer passar pela necessária adequação pedagógica aos vários níveis de ensino”

“é fundamental haver terminologias linguística e literária comuns aos diversos níveis de escolaridade”

“Para os mais novos, e como forma de atender à necessária fruição da leitura, sugerimos a simplificação de obras clássicas. Gostaríamos também que fosse encontrada uma fórmula, em conjunto com as escolas, para a oferta ou venda a preços simbólicos de livros de literatura que fariam parte da biblioteca ou das bibliotecas de turma.”

[5] Vieira, Maria do Carmo (2010) - O Ensino do Português. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

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