Noam Chomski ao Expresso
Tivemos a recente visita de Chomski. Não sei se com ele veio também o grande linguista ou só o ativista político. Solicitado a comentar o ataque ao Charlie Hebdo pelo Expresso (a), Chomski declarou que ele não era Charlie, implicando na expressão uma solidariedade estética e ideológica:
"Não, eu não sou Charlie! E não gosto desse jornal!".
Ora, não é disso que se trata, mas apenas da defesa da liberdade de expressão. Creio que toda a gente entendeu isso. Não ser Charlie é, por exemplo, Sartre a vender na rua um jornal que era pereseguido pela polícia apesar de, nesse gesto, não pretender estar a subscrever as posições daquela redação.
É pena não termos uma justificação do desagrado de Chomski relativamente ao "Charlie Hebdo". Talvez compreendêssemos melhor os seus pontos de vista. Mas Chomski prefere inverter a argumentação e generalizar o conceito de terrorismo aos EUA que seriam terroristas pela campanha global de assassínios que o governo de Obama está a fazer no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão.
Não sei se com este termo se referem todas as ações militares conduzidas pelos Estados Unidos nesses países ou apenas os assassinatos propriamente ditos que são um tipo de ação militar claramente assumido pela Administração. Há inimigos indentificados pelas autoridades militares americanas que se encontram numa lista para serem abatidos pelo exército. Tais ações justificam-se defensivamente por se tratar de indivíduos estrangeiros, em países hostis, que estão a preparar ataques aos EUA. Por exemplo, lembro-me de ver o Bill Clinton a falar sobre o ataque, ordenado por ele, a uma fábrica do Sudão que era de facto controlada por elementos ligados à Al-Qaeda, com o objetivo de atingir indivíduos implicados no ataque às embaixadas na África Oriental. Temos visto o que o governo sudanês tem feito ao seu próprio povo, com genocídios no Darfur e noutras regiões pelo tipo de gente solidária com os alvos do programa de assassínios americanos.
Chomski parece aceitar o que os atacantes ao Charlie Hebdo queriam: que eles representam o mundo islâmico contra o Ocidente. Dum lado, coloca o ataque ao "Charlie", do outro, ações militares americanas. Rejeita que o ataque ao "Charlie" seja o maior ataque à liberdade de expressão na nossa memória viva, porque
esta "memória inclui o que eles nos fazem, mas não o que lhes fazemos".
Diz isto ao comparar um ataque ao hospital de Faluja ao caso do Charlie Hebdo. Eram realmente os mesmos - a Al Qaeda do Iraque. Não estou em condições de avaliar o que aconteceu em Faluja, mas sei quem eram e sei que eles têm morto muito mais iraquianos do que americanos e que representam uma minoria sunita, mesmo, entre estes, e que afrontam a liberdade e a vida da maior parte das pessoas do seu país.
Independente dos danos, tanto no caso Charlie, como em Faluja, temos que ver os objetivos dessas ações e eu presumo que temos que dizer de que lado é que estamos. Chomski foge assim ao essencial que é pronunciar-se sobre os ideais em causa nas duas ações: dum lado, um grupo que pretende impor pela força um tipo de sociedade onde não existe qualquer liberdade, onde todos têm que comungar um certo credo religioso, onde as mulheres estão submetidas a uma tirania total. Enfim, talvez Chomski não goste desta palavra, mas dum lado está o totalitarismo, do outro, a liberdade. Digo isto desta forma simplista, pois sei que muitas gradações e cambiantes há a fazer, mas o simplismo chomskeano merece uma resposta simplista também.
No comentário à dívida portuguesa, Chomski, coloca-a sob a etiqueta do odioso. Contudo, continuamos a criar mais dívida. A dívida está nas nossas autoestradas, está em cerca de 8% do nosso orçamento de estado anual. Serão as nossas estradas odiosas? O mais caricato disto tudo é não perceberem que nós, portugueses, espanhóis e gregos, só queremos resolver o problema da dívida para podermos continuar a endividar-nos.
As dificuldades de Chomski e desta esquerda simplória que o acompanha resultam da sobrevalorização negativa do que denominam de imperialismo americano. Nada do que está contra a América e é combatido por esta lhes exige qualquer inspeção ou avaliação. Todos os adversários socialistas das nossas democracias ocidentais estão do lado do bem contra o mal. A extrema esquerda americana também tem um eixo do mal a contrapor ao de Bush.
Por isso, Chomski preferiu esquecer ou desvalorizar o deastroso genocídio dos Kmehr Vermelhos no Cambodja, pois estes eram inimigos dos EUA (b). Ele e outros, entre os quais se encontra a equivocada Joan Baez, chegaram a elogiar os progressos de um regime político que deixou atrás de si um lastro de três milhões de mortos e, continuam hoje numa posição de negação a propósito desse e de outros holocaustos. Para apoiarem regimes como esse e o da Coreia do Norte, não precisam de muita informação nem garantias e os desvios entre aquilo que imaginavam e o que realmente lá se passava eram ignorados ou minimizados.
Chomski e todos os outros intelectuais que apoiaram o regime cambodjano de 1975 a 1979 deviam sentir-se corresponsáveis por não ter havido nenhuma ação digna de registo da comunidade internacional nesse período, pois criaram uma atmosfera favorável a esses regimes, que, na sua perspetiva, se teriam liberto do imperialismo americano em 1975. A verdade é que logo a seguir à conquista de Phnom Penh houve informações de jornalistas e refugiados que contradiziam a sua idílica e romântica versão.
(a) Ver Expresso, Revista de 16 de Maio de 2014.
(b) Cambodian genocide denial; ver também Ear, Sophal, The Khmer Rouge Canon 1975-1979: The Standard Total Academic View on Cambodia.
Mais discussões sobre as posições de Chomski sobre o que se passava no Cambodja:
Sharp, Bruce, Averaging wrog answers: Noam Chomski and the cambodja controversy