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Sem Rede

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

"Sobre aquilo de que não conseguimos falar, é melhor calarmo-nos." (Was sich überhaupt sagen lässt, lässt sich klar sagen; und wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen) - Wittgenstein.

Sem Rede

29
Mai14

O triângulo das portas de Heitor (Lisboa, Plátano, 2010)

Redes

 

Heitor Lourenço oferece-nos em O triângulo das portas, uma história fantástica que tem como protagonistas um adulto e duas crianças, tio e sobrinhos. A história decorria já como uma brincadeira das crianças - na perspetiva do adulto. A entrada deste é feita quase como um ritual de iniciação, sem o qual não poderia desempenhar o seu papel na história. Um dos elementos estruturantes da narrativa é precisamente a oposição entre a seriedade dos adultos e a fantasia infantil que comentarei mais à frente.

No resto de pinhal que havia perto da casa dos seus pais, os sobrinhos do narrador engendram uma história feita de elementos conhecidos. Por exemplo, o Reino do Meio lembra-nos a Terra Média do Senhor dos anéis de Tolkien, o modo de acesso a esse mundo fantasioso e os papéis desempenhados pelas crianças - rei e princesa - remetem-nos para As crónicas de Nárnia de C. S. Lewis. Se neste, tal como no Quebra-Nozes de Hoffmann, o dispositivo de entrada é um guarda-fatos, aqui falta alguma clareza a esse respeito.

A história começa com indícios, isto é acontecimentos estranhos para o narrador, que, depois são interpretados como elementos que serviram para o introduzir no enredo. Uma ameaça da câmara municipal à sobrevivência do pinhal ficou a pairar sem resposta na história fantasiosa. Se algum paralelismo entre real e fantasia se anunciava ao leitor, o decorrer ignorou-o.

O Reino do Meio é ameaçado pelo Senhor dos Mortos. A natureza desta ameaça não é clara. A destruição pura e simples? A perversão do modo de vida do Reino do Meio? De que maneira? É verdade que na literatura fantástica é comum haver o perigo do mal destruir o mundo. A figuração dessa ameaça aparece na História Interminável de Michael Ende sob a forma do Nada, no Senhor dos Anéis é a perversão total da natureza, com a degradação das suas criaturas destruídas por seres monstruosos às ordens de Sauron, o senhor do mal, no Harry Potter é o triunfo da magia negra de Voldemort, em Nárnia é a dama branca do gelo e da neve que vem do conto da “rainha das neves” de Andersen para destruir a vida dos narnianos.

Neste caso, temos o Senhor da Morte a querer obrigar Cora, a princesa do Reino do Meio a casar com ele, a fim de se apoderar desse Reino.  O próprio narrador refere os mitos de Perséfone e de Orfeu e Eurídice como a fonte deste episódio e esse conhecimento é de enorme valia na luta contra o poderoso Senhor. Além da falta de uma figuração do que pode acontecer aos habitantes do Reino do Meio, caso vença o Senhor da Morte, sinto pouca consistência no mundo referido, isto é, falta o que poderíamos designar de efeito de realidade. Quando leio o Senhor dos Anéis, começo com uma descrição de um mundo totalmente diferente do meu - o dos Hobits. Eles ganham existência, graças à descrição que os faz aparecerem-me de carne e osso. São pequenos seres que despertam a minha solidariedade e ternura porque trabalham para sobreviver, vivem, morrem e têm conflitos uns com os outros, com personalidades complexas. Há um quotidiano no mundo dos Hobits, cujas regras são infringidas quando Bilbo coloca o anel que o faz desaparecer magicamente perante todos. Depois começamos a perceber como pode acontecer esse fato excecional. Quer dizer, aquilo que é estranho torna-se real para mim leitor, graças à riqueza da narração e da descrição.

Não me parece que os elementos que constituem o mundo fantasioso do Reino do Meio tenham essa consistência. Falta a dor do espaço que tem de ser percorrido. Parece tudo muito perto ou imediato, pela falta de acidentes, entre o Reino do Meio e o Vale dos Mortos. Aos seres fantásticos, quer aos bons, quer aos maus, faltam predicados, ações e limitações para serem amados ou odiados pelo leitor: os trombos, a serpente com cabeças humanas, os gnomos, as fadas, etc. Comparem-se por exemplo com os orcs ou os trolls do Senhor dos Anéis. O Vale dos Mortos aparece no Senhor dos Anéis com uma função positiva: permite a Aragorn atalhar caminho e chegar a tempo de salvar Gondor. É que também os mortos estavam contra o Senhor do Mal. Há males piores do que a morte.

Contudo, na mitologia grega, o mundo dos mortos, embora temido, não consitui uma ameaça. O problema foi Hades apaixonar-se por Perséfone, raptá-la e deixar a mãe desta, Deméter, furiosa e desleixada a ponto das plantas não crescerem mais e os homens passarem e morrerem de fome. Voltando ao problema de início, aparece muitas vezes a oposição entre o adulto, preso à realidade e a criança, livre no mundo da imaginação e da fantasia. A verdade é que as narrativas fantásticas para adultos não são menos fantasiosas do que as que se destinam às crianças. Todos nós precisamos e exultamos com a fantasia. Uma forma de resolver esta oposição é dizer que somos crianças toda a vida. Outra forma seria dizer que a fantasia é uma coisa muito séria.

Quanto à escrita, frase a frase, encontramos recursos interessantes e imaginativos. A relação entre tio e sobrinhos, nas contrariedades do dia a dia, na tentativa de aproximação do adulto às crianças e na entrada dele na brincadeira está descrita de uma forma cativante.

A ilustração de Tiago Araújo não ajuda a concretização da leitura. O tipo de simplificação gráfica parece “mal desenhado”. Não dá nova informação aos jovens leitores nem asas à imaginação.

Concluindo, O triângulo das portas acaba por ser uma história envolvente a que falta consistência narrativa e descritiva.

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