Pedir desculpas a quem?
O tema do pedido de desculpas e/ou de reparações coloniais vai e volta. Aqui, analiso a questão a partir de um texto publicado em 2021.
“Quando há erros históricos devem ser reconhecidos” - afirma Vitor Ramalho no Público . Referia-se aos "crimes do colonialismo". Se se considera o colonialismo um crime ou um erro, não haverá crimes, mas apenas um único grande crime com diversos episódios. Neste caso, teremos que nos questionar a respeito do ethos que nos permite julgar esse período histórico, após o seu fim, na vigência de movimentos ideológicos e políticos que só existem numa realidade resultante da colonização. Descolonização, nacionalismo e socialismo africanos com o seu cortejo igualmente pesado de mortes e sofrimento para vários povos de África radicam precisamente na ação colonial, sem a qual não existiriam mesmo as atuais nações africanas.
Como aparece no plural, "crimes do colonialismo", trata-se não do colonialismo como um todo mas de ações que têm que ser identificadas para se poder fazer a seu respeito um pedido de desculpas, como no exemplo dado da expulsão dos judeus de Portugal em que se pressupõe a existência de uma entidade - o estado português - cuja continuidade é afirmada como uma pessoa supra-histórica, não obstante as revoluções havidas, com muitas guerras e mortes cá em casa, para nos responsabilizarmos agora com toda a história passada. Será que o estado português deverá também pedir desculpa pelos crimes cometidos por cada um dos reis que em dados momentos da história dirigiram este "nosso destino"? Por exemplo, aos descendentes do conde Andeiro, aos dos Távora, etc.
Lamentar que determinados eventos tenham sucedido, condenar os princípios ideológicos que sustentaram ações políticas do passado, mostrar o facto de colonialismo, racismo e semitismo estarem ultrapassados pela história das mentalidades e das ideologias é um imperativo atual, mas tal lamento não justifica a ideia dum "pedido de desculpas", desde logo por não haver destinatário para tal.
Com efeito, não vejo nos países africanos, um processo interno de pedido de reparações ou de desculpas, pelo tráfico de escravos e pelas rapinas que o sustentavam internamente. Inúmeros reinos e impérios africanos beneficiaram com a captura e a venda de escravos aos europeus. No século XIX, muitos dos que resistiram às guerras da ocupação efetiva de África eram líderes africanos que estavam a perder o negócio. Lembremos que um dos objetivos internacionais da dita ocupação efetiva era precisamente acabar com o tráfico.
No caso dos judeus, talvez D. João III pudesse pedir desculpa e indemnizar as vítimas, mas, ele não tinha os nossos princípios morais que derivam de uma longa história que inclui a afirmação dos direitos do homem, após as revoluções dos séculos XVII, XVIII e XIX. Muito pelo contrário, o primeiro tornou ainda mais difícil a vida dos judeus que ficaram com a instauração da Inquisição. Os descendentes desses e de outros judeus viriam ainda a sofrer inúmeros crimes populares e políticos por toda a Europa de que se destaca o do Holocausto nazi.
Identificar atos políticos merecedores desse pedido de desculpas também não é fácil. Para o fazer, temos que identificar as motivações e as opções efetivas que tinham os agentes que terão cometido esses crimes. Lembro-me da minha consciência de jovem português que via nos meus colegas de escola de todas as raças portugueses como eu, de pleno direito, um pensar e sentir que resultou da educação que recebi na escola. Mais tarde, compreendi essa inflexão histórica que aconteceu nos anos 60 em resposta à luta armada e à condenação política internacional, mas essa ideologia foi eficaz internamente e conduziu à expansão da educação que transformou milhares de africanos em portugueses. Teria de haver liberdade para haver discussão ideológica e formação de consciências pelo debate e pela argumentação. Felizmente, para ele, o caso de Vítor Ramalho que apreendeu aos 18 anos a iniquidade do "regime colonial" nos anos 70, numa altura em que o próprio regime já não se considerava colonial.
É seguramente possível avaliar e julgar como criminosa a decisão do governo português de não aceitar o princípio internacional da autodeterminação e enveredar pela guerra colonial e pela criação do discurso que a sustentou e que minou milhares de consciências sem alternativa, mas não pedir desculpa por a nossa história desde a reconquista cristã, já cheia de cativos, de judiarias e mourarias, até ao 25 de abril, ter sido o que foi.