Quotas para negros e ciganos?
É o tema discutido num artigo de Fátima Bonifácio no Público que deu muita celeuma. Interessa-me mais discutir alguns dos seus argumentos do que a tese propriamente dita. Dito de outro modo: há melhores argumentos para nos opormos a quaisquer quotas. Se as mulheres têm dificuldade em ascender a postos de chefia nas empresas, na sociedade e na política, o que temos de fazer é combater os obstáculos que impedem a sua progressão em paridade com a dos seus colegas masculinos, em vez de criar direitos especiais para elas. O mesmo se aplica a pessoas negras ou ciganas.
Infelizmente, não foi esse o caminho seguido por FB. Enveredou pelo princípio da identidade cultural e histórica:
As mulheres, que sem dúvida têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprios.
Mistura duas ideologias diferentes, o cristianismo e os direitos do homem, que foram ambas espezinhadas na Europa por diversas ditaduras fascistas e socialistas tal como aconteceu recentemente em países africanos. É também nestes que vemos agora o estado de direito, os ditos diereitos do homem e a democracia política a impor-se.
Perante um africano, não sei à partida qual é a sua crença religiosa nem tampouco a sua ideologia política. Muitos são cristãos - o cristianismo é a religião dominante em África - outros são muçulmanos, animistas ou ateus. Não tenho qualquer motivo para considerar que eu tenho mais direito a considerar-me cristão, ateu, marxista, socialista, liberal ou o que quer que seja do que um africano. Estudei num liceu onde a maior parte dos meus colegas eram negros, em que todos nos achávamos portugueses, embora com diferenças culturais que reconhecíamos (e que era parte desse discurso que nos impingiam). A partir de 1975, alguns desses meus colegas descobriram-se com outra nacionalidade e eu, branco, habituado àquele país, também considerei a possibilidade de mudar de nacionalidade.
Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais. Há pouco tempo, uma empregada negra do meu prédio indignou-se: “Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana.”
O que é engraçado nesta afirmação é que, no contexto em que é dita, serve apenas para justificar o racismo branco e não para condenar o racismo em geral. É evidente que, africanos, os há racistas contra os brancos e contra outras etnias. Quanto ao discurso da empregada negra do prédio da FB, conheço-o muito bem e pode ser lido doutra maneira: não me identifique, por favor, pela minha cor da pele, pois apesar de ter uma cor parecida, a minha identidade distingue-se das dos que vêm de África, eu sou cabo-verdiana. Já há muito tempo que os caboverdianos reivindicam uma identidade específica relativamente ao continente africano. Terá sido essa diferença que condenou o PAIGC à falência. E, precisamente, nessa reivindicação, exclui-se a cor da pele como identidade. A verdade é que a empregada quer fugir ao estereótipo de negro que a FB lhe quer impor.