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(Imagem de cnocondeourem.webnode.com)
A Regina[1], apesar do seu nome, não coube nenhum outro atributo de realeza ou de nobreza. Nasceu num lar muito pobre e numa família muito grande. Na escola, teve um sucesso muito limitado, que depressa levou o pai a concluir que ela “não dava para a escola”. Assim que completou o 6º ano de escolaridade, o pai pô-la a trabalhar como empregada doméstica para contribuir para o rendimento da família.
Após anos de trabalho doméstico, já com a sua própria família para cuidar, Regina vislumbrou uma nova oportunidade de completar as suas habilitações. Em três ou quatro meses, fez o 9º ano de escolaridade. Milagre: foi como se cada mês tivesse o rendimento de um ano.
O notável sistema que consegue realizar este feito chama-se “novas oportunidades”. Regina dirigiu-se a um desses centros a conselho de uma amiga que lhe dissera que “não perdia nada com isso” e era uma maneira de passar o tempo. “Também, que raio, todo o santo dia a lavar escadas de prédios e a passar a ferro, tenho direito a algum tempo para mim. Que me saiu do pelo, saiu, mas pronto, agora tenho o 9º ano”. “Mas Regina, quatro meses é muito pouco tempo para realizar o que os meninos demoram três anos a aprender na escola.” “Lá isso é!”, concordou.
Curioso, propus-lhe alguns problemas de simples aritmética: calcular uma raiz quadrada, por exemplo. Lancei alguns números grandes, mas óbvios quadrados perfeitos, que a puseram a pensar, absorta. “Mas é para fazer o quê? Só com um número.” “Estou a ver que não lhe ensinaram muita matemática nesses meses em que esteve na escola”. “Ah, não era matemática da escola, era matemática para a vida.” “E, então, a matemática da escola não é para a vida?” ”Sim, mas era diferente. Por exemplo, fazer contas com a calculadora e ler barras.”
Que currículo terá sido proposto a Regina? Pelo que li, descobri que foi sujeita a um “reconhecimento e validação de competências”. Dizem que ela, desde que deixou a escola continuou a realizar aprendizagens “experienciais”, apesar de não ter as ditas escolares e formais. Então, importa descobrir o que ela aprendeu de novo na vida para certificar.
Ana Pires[2] diz que se trata de dar “visibilidade social” a essas queridas aprendizagens experienciais, da vida. Baseando-se em Nóvoa, 2001[3], esclarece que são “saberes que escapam aos referenciais clássicos dos saberes disciplinares”, num discurso em que defende estes saberes contra a valorização tradicional dos saberes tecnológicos e científicos que são oriundos da concepção dominante do racionalismo. Mas Nóvoa e a autora que o cita estão contra o racionalismo? A favor de quê, do “irracionalismo”? Noutros passos, criticam a hierarquia que valoriza o conhecimento científico e tecnológico, considerada “positivista”.
Segundo eles, com isto do reconhecimento e validação de competências, “o saber de experiência feito” adquire um novo estatuto face ao saber científico. A que estatuto se referem? A ciência e a técnica ancoraram o conhecimento e a acção humanas na experimentação rigorosamente controlada e denunciaram precisamente os enganos da experiência que nos diziam, por exemplo, que o Sol anda à volta da Terra.
Nenhum de nós, consegue viver só com conhecimento tecnológico e científico. Nada dispensa a experiência de vida, mas, neste capítulo, ninguém me tinha que certificar. Até agora, pelo menos. Neste capítulo, da experiência de vida, eu, um universitário pós-graduado, posso aprender muito com a Regina, como ela comigo. Deverei supor que agora que ela já reconheceu a sua experiência de vida está num plano superior ao meu? Devo acorrer sem demora a um desses centros para validarem a minha experiência de vida? Esses que lá estão para o fazer, como é que ganharam esse estatuto que lhes permite avaliar as “aprendizagens experienciais dos outros”?
“A vida e a experiência é o que se pretende validar” – Meu Deus, mas é realmente necessário?
A esta etapa da valorização que se concretiza no portefólio, que é enfaticamente uma singularidade como aquelas a que os astrónomos se referem – buracos negros - e que escapam a toda a ciência que é feita do particular e do geral, mas não do singular, segue-se uma outra que é a da validação que depende dum “referencial”.
A Agência Nacional de Qualificação apresenta-o num documento. No seu intróito, afirma-se que, com este catálogo, definem-se as competências necessárias para uma “igualdade de oportunidades perante a educação e a formação ao longo da vida”[4]. Se se tem que fazer um programa especial, há uma desigualdade reconhecida e que se reafirma nessa mesma opção.
O referencial afirma simultaneamente uma equiparação nos níveis de competências básicas aos ciclos do ensino básico, ao mesmo tempo que afirma a diferença. É e não é ao mesmo tempo – deve ser isso que se quer dizer quando se critica a ciência, a tecnologia, o racionalismo e o positivismo. Aqui pode-se sempre ser e não ser, uma vez que não estamos dependentes da lógica formal. Por exemplo, o referencial que pretende servir para certificar competências é “aberto e flexível”, não para aplicar à risca.
No referencial de Matemática, lá estão as raízes não só quadradas mas também cúbicas – no nível B3, que aqui não estamos para brincadeiras.
Incluem-se “critérios de evidência” e “sugestões de actividades”, mas não se indicam os níveis de desempenho que implicam descrições dos produtos que o formando deve ser capaz de realizar e explicitação de materiais que são objecto de trabalho. Alguns desses elementos aparecem nas sugestões de actividades. Por exemplo, uma “evidência” em linguagem e comunicação é “escrever com correcção ortográfica e gramatical” que é uma coisa que ninguém faz em cem por cento. Uma pessoa pode não fazer nenhum desses erros, mas utilizar uma estrutura sintáctica demasiado simples. Outra aventura-se para uma sintaxe mais complexa e faz mais erros. No ensino básico, o nível de desempenho torna-se bastante claro, pelo tipo de textos que são lidos em cada nível e que o professor espera que os alunos façam.
Regina não faz nem uma coisa nem outra. É quase um erro em cada palavra. Quatro meses não chegariam para que ela atingisse o que se espera no 9º ano, pois as suas experiências de vida não passaram pela leitura nem pela escrita. Creio mesmo que o seu desempenho é inferior ao que teria quando terminou o 6º ano de escolaridade. Terá conseguido esta certificação graças à “flexibilidade” e “abertura” do referencial?
De acordo com Pires e Nóvoa, a certificação enquadra-se na luta contra a “exclusão social” e pela “reinserção” dos indivíduos (Pires, p. 8), mas que o valor será o que a sociedade atribuir a estes “diplomas”.
Nos casos que conheço, não vi nenhum ganho significativo em termos de formação no que respeita aos descritores que constam do referencial. Dir-se-ia, como no ensino básico, que aqui há muito “facilitismo”. Como os próprios descritores são menos exigentes do que os do currículo nacional e os dos programas oficiais do ensino básico, esta creditação será sempre desvalorizada. Os indivíduos que não conseguirem fazer um currículo escolar tradicional, fá-lo-ão não para se diferenciarem, mas, antes para se indiferenciarem, isto é, para não ficarem marcados por não o terem feito. O mercado de trabalho não as considerará e apelará antes para a experiência do indivíduo e as suas qualidades intrínsecas, escolares ou outras.
Creio que as pessoas querem distinguir-se. Estudam e esforçam-se para obter certificações. Estas valem pela sua dificuldade e fiabilidade, por assegurarem competências. É por isso que os diplomas universitários nas economias mais liberais não valem todos o mesmo. Dependem da credibilidade da universidade que os atribui. No nosso caso, as qualificações escolares tendem a tornar-se indiferentes.
O que me espanta nos textos referidos do Nóvoa, Pires e outros, é a vacuidade do conteúdo e a enorme carga retórica, supremamente adjectiva – veja-se a constante repetição do adjectivo “nova”, - e a ideologia obscura, anti-racionalista, anti-escolar, anti-tecnológica e anti-científica, para a qual não é trazida nenhuma evidência.
A experiência de vida pertence a cada um. Há mil e uma carreiras não escolares onde os indivíduos podem progredir pelo valor que têm: karate, judo, futebol, xadrez, culinária, etc., que têm as suas estrelas merecidas. O que as caracteriza a todas é a disciplina, os critérios rigorosos e os desempenhos que permitem às pessoas singrarem e distinguirem-se.
Tudo o que não exige esforço e demonstração de desempenho é gratuito e inútil. Nisto se tornou em parte o nosso ensino básico. A última machadada na credibilidade do 9º ano foi este sistema de RVC que diz que uma pessoa que quase nada estudou e muito pouco sabe tem equivalência ao nível dos jovens que percorrem a escola com um desempenho satisfatório.
http://www.esas.pt/novasoportunidades/index.php?option=com_content&task=view&id=30&Itemid=46
[1] Amálgama de três casos que conheço que têm como denominador comum a aprendizagem quase nenhuma num curso curto que lhes deu equivalência ao ensino básico (pelo menos, é o que pensam).
[3] Nóvoa, António (2001), États des lieux de l’éducation comparée, paradigmes, avancées et impasses. In R. Sirota (dir), Autour du comparatisme en éducation. Paris: PUF, pp. 41-68.