As notas escolares não diferem muito das notas monetárias. Em si próprias, nada valem, nem sequer papel são, como acontece com o dinheiro. Dependem totalmente do crédito que se lhes atribui socialmente. Se acontecesse ao dinheiro o mesmo que às notas escolares, estaríamos numa crise económica sem precedentes, pior do que a de 21 ou a de 29. Na economia do sistema escolar, não há qualquer hipótese de recuperar o valor perdido das notas que cada um acumulou, com uma corrida aos bancos, por exemplo, como acontecia noutros tempos: quando o papel já não tinha crédito, pedia-se a devolução do ouro que ele representava.
Se a desvalorização das notas resultasse de um aumento da oferta do que elas representam, isto é, de indivíduos qualificados, estaríamos bem e não teríamos nenhum motivo para querer diminuir o seu valor nominal, pela pressão do número. A inflacção de que tratamos aqui tem a ver com o valor intrínseco, absoluto e não relativo do que as notas representam. Isto é, a qualificação científica e cultural dos indivíduos não acompanhou proporcionalmente o aumento das correspondentes notas no mercado. Resultado: já ninguém acredita nelas!
Paradoxalmente, não há curso em que os alunos não desejem notas cada vez mais altas, fingindo ignorar que, quanto mais generosos forem os seus professores, menor valor tem o que oferecem. Inversamente, quanto mais exigentes forem os critérios de atribuição, maior valor têm as notas concedidas.
O facilitismo resulta na concentração dos valores numa pequena parte da área positiva da escala e, sobretudo, nos valores considerados bons - 13 a 20, que são aquilo que José Sócrates designou em entrevista "notas que não envergonham ninguém". Seria interessante ver quantos alunos têm notas passíveis de "envergonhar alguém" nas nossas universidades.
O problema é que, se as escolas forem consideradas equivalentes a priori , os finalistas das escolas mais exigentes não se distinguirão dos que são oriundos das de menor qualidade ou que são mais generosas nas notas.
No ensino básico, com a institucionalização da escala 1 a 5, o sistema semiótico das notas cedeu a pressões igualitárias e perdeu poder de distinção. Contudo, no secundário, a escala de 0 a 20 continuou a vigorar. Quando a distinção se torna necessária, por causa dos numerus clausus, a escala de 1 a 20 transforma-se num sistema alienante de 0,0 a 20,0, em que já ninguém sabe, na prática, o que significa a diferença de 0,1 que pode impedir um indivíduo talentoso de seguir uma carreira médica, por exemplo.
Quando o leitor se encontra perante uma pauta de classificações de uma escola, que lhe parece que significa cada 3, 4 ou 5 que encontra à sua frente? Sucesso escolar! - dirá, sem qualquer margem para dúvidas. Inversamente, o 2 e o virtualmente inexistente 1, significam insucesso. Tem mesmo a certeza disso?
As notas, são, primeiro, atribuídas pelo professor que tem como referência as exigências programáticas oficiais. Mas os programas têm que ser aferidos ao currículo que é concretizado na sala de aula. Assim, o 5 atribuído numa turma tumultuosa ou fraca acaba por ser menos exigente do que aquele que é atribuído numa turma de alunos de alto desempenho. No conselho de turma, a nota negativa de um aluno pode ser alterada para "3", à revelia da opinião do professor, a fim de permitir que o aluno, de acordo com a lei, "passe de ano".
Faço aqui um parêntese para perguntar porque é que a legislação nos obriga a mentir e a desautorizar um professor para passar um aluno de ano. Trata se unicamente de salvaguardar a regra de que a passagem de ano implica não ter mais de duas negativas, ou negativa a Língua Portuguesa e Matemática, em simultâneo.
Além disso, um aluno com necessidades educativas especiais, por exemplo, poderá beneficiar de um currículo adaptado e de regras de avaliação diferentes, mas as designações são as mesmas: 1 a 5.
Como se isso não bastasse, o professor considera no nível que atribui coisas como "valores e atitudes" ou "comportamento e participação". Alguns autores de livros sobre a disciplina na sala de aula, consideram que o professor pode estabelecer um contrato individual com o aluno utilizando como moeda de troca gratificações na classificação.
Assim, quando olhamos para um 4 a Matemática numa pauta do 6º ano, de acordo com a lógica do "antigamente", deveríamos pensar: "olha, este aqui é mesmo um bom aluno a Matemática; seria um de 16, no meu tempo". Mas não: pode ser um caso de "nee" que finalmente conseguiu decorar a tabuada, um aluno satisfatório que começou a comportar-se bem ou um "hooligan" que concordou em não partir as carteiras da sala de aula num contrato estabelecido com o professor.
O que é curioso é que é com um sistema classificatório desta latitude que o governo quer medir o desempenho pedagógico dos professores. Como as pessoas que propõem isto são inteligentes, só podemos concluir o seguinte: o governo quer aumentar ainda mais a latitude dos critérios das notas, com mais um parâmetro, a classificação do próprio professor. Engenhoso: ao dar notas, classifico-me a mim próprio e dou uma ajuda nas estatísticas do governo. Vamos a isso!