O bafo de Deus
Quadro de Martin Schongauer (1445-1491)
(fonte: https://1.bp.blogspot.com/_Dwm0gUTYyWA/SRMdPf8WEhI/AAAAAAAAAe8/t1Cu12Q_C7I/s1600/martin-Anunciacao.jpg)
Na história da santa concepção, há certamente muito bafo. E muito bafio devia encher a gruta aonde se acolhera a santa família, de acordo com a tradição. Inevitavelmente, o bafo do burro e da vaquinha e o abafado ar da invernosa humidade circundante. Mas aqui importa sobretudo o bafo sagrado, protagonista duma acção que se vinha desenrolando de há nove meses atrás e que é assim relatada por Camões, na perífrase que põe na boca de Monçaide, na explicação que dá ao Catual sobre quem são os que chegam com Vasco da Gama:
Têm a lei dum Profeta, que gerado
Foi sem fazer na carne detrimento
Da mãe, tal que por bafo está aprovado
Do Deus, que tem do mundo o regimento. (Canto VII, 69)
O bafo é o mesmo sopro que serve, na etimologia, para fazer pff, mas também para produzir palavras, que não se conseguem sem a energia do ar em movimento.
Este bafo é pois o Espírito Santo, conforme aparece na narrativa original:
"Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo". (Mateus 1:18)
Se Mateus só nos fala da concepção, Lucas, precede-a da anunciação, que pode ser mesmo o próprio acto de geração. É o anjo Gabriel que vai ter com Maria e lhe anuncia o nascimento do "filho do Altíssimo".
"Como se fará isto, visto que näo conheço homem algum?" - pergunta Maria.
"Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus" - responde Gabriel (Lucas, 1:26-35).
O Espírito Santo é o mesmo bafo divino que aparece em inúmeros locais, nos livros bíblicos. É o ruah hebraico que anda sobre as águas no Génesis, é o pneuma grego e é o spiritus latino. O sopro antecede a palavra, origina a vida e dela se exala no silêncio do último suspiro. É um bafo ou uma corrente de palavras, que aparece em vários quadros quinhentistas a representar na Anunciação, um fluxo germinador, que procede do anjo para Maria.
É algo universal que transcende a nossa cultura ocidental. O sopro é vida, alma e espírito, nas culturas bantu, por exemplo. É pela boca que o mau espirito deve sair. Há deuses que bafejam boa sorte, outros o contrário. O invisível, o vital, apresentava-se sob a forma dum fluxo de ar.