Da primavera e de um banquete em que se falava de amor.
Duas estrelas que orbitam uma na outra (http://www.cubbrasil.net/index.php?option=com_content&task=view&id=2297&Itemid=106)
Com a Primavera a florescer, liberta-se energia que por todo o lado une e separa as coisas. Vejo os jovens, que abrigam em si a força vulcânica da vida, a gravitarem, uns satélites dos outros, como aquelas duas estrelas que se fazem cada uma centro da outra numa curiosa coreografia cujo fim é já a queda dos graves que os astrónomos anunciam para breves nx anos.
É este sopro que me leva a relembrar alguns velhos textos gregos de uma tradição cujas origens se perdem nos tempos arcaicos e desemboca em filósofos e escritores tão eminentes quanto Platão e Aristófanes.
Os mitos desempenham aí um papel essencial na expressão de ideias sobre o amor. São textos de uma modernidade a toda a prova, de uma legibilidade intemporal, que releio sempre com espanto e admiração. Um deles é o Banquete de Platão.
Primeiro que tudo, o amor é físico, está imanente em quase todas as coisas. Quando falamos da relação física e corporal entre seres humanos, aparecem as figuras de Afrodite e de Eros. O exercício erótico pertence mais à deusa do que ao seu filho. Este representa mais a necessidade de amor do que o exercício propriamente dito, o “fazer amor”, embora pese em sentido contrário a etimologia.
Por isso, aparecem duas biografias diferentes de Eros. Aquela que conhecemos mais e que aparece na célebre história de Eros e Psiqué é a de Eros como filho de Afrodite. Hesíodo, contudo, apresenta-o como um deus dos primórdios, que sucede ao Caos e à Terra, e antecede o próprio Zeus (Rocha Pereira, p. 28; Platão, p.36; Hesíodo, em Teogonia, excerto em Hélade, p. 82).
Eros é o cimento do Universo. Se quiséssemos encontrar-lhe um equivalente contemporâneo, ele estaria certamente no sonho da Física contemporânea de conseguir uma teoria da unificação das quatro forças fundamentais – gravitacional, electromagnética, nuclear fraca e nuclear forte. Hesíodo atribui a Eros a força que dá coesão a toda a matéria como muito bem expressa Erixímaco no discurso d’O Banquete:
Que o Amor seja de duas espécies, eis uma distinção a meu ver bem feita. Todavia, longe de limitar-se às almas dos homens e ter por motivo a beleza humana, há uma imensidade de outras coisas que o motivam e outros seres onde se manifesta – nos corpos de todos os seres vivos, nas plantas nascidas da terra e, a bem dizer, em tudo o que existe! (Platão, p. 47)
Aqui Erixímaco refere-se à oposição entre a Afrodite celeste e a Afrodite popular, a que é filha do Céu e a que é filha de Zeus. Uma protagoniza uma forma de amor superior que ultrapassa o desejo centrado no corpo e procura a alma do outro; a outra corresponde ao protótipo venusiano de amor físico de que já falámos. É, pois, uma oposição similar à que um orador anterior, Fedro, apresentara, entre Eros e Afrodite.
Embora na maior parte dos mitos, Eros apareça como um ser extremamente belo, filho de Afrodite, n'O Banquete, ressalta sobretudo a incompletude, a carência, que o leva à procura da ligação amorosa. É esse sentimento de falta que caracteriza o próprio amor, tanto na alegoria de Aristófanes, que faz o amor surgir precisamente entre as metades de um ser originalmente completo, fracturado por Zeus, como na análise de Sócrates em que o Amor é um ser carente de beleza e a procura desesperadamente.
Aristófanes esclarece que os seres originais eram de três géneros – masculino, feminino e andrógino -, permitindo assim explicar porque é que alguns procuram metades do mesmo género. Sócrates, no seu discurso, inverte o estilo mais comum nos diálogos, ao apresentar-se como a personagem que é inquirida, dando protagonismo a Diotima, uma mulher sábia que o conduz à conclusão de que a beleza e a sabedoria não são atributos necessários de Eros, ou Amor. Pelo contrário, Eros, filho do Engenho e da Pobreza, estaria numa constante situação de carência e, ao contrário dos deuses imortais, estava condenado para toda a eternidade a mortes e ressurreições cíclicas. Só se ama o que não se tem e quando se alcança a satisfação, graças ao engenho, logo o amor desaparece e morre, para ressurgir numa nova situação de falta.
Sócrates tenta depurar o sentido do amor de todas os outros sentidos que vulgarmente o acompanham, sobretudo, a beleza, tentando chegar assim a um conceito perfeito do amor.
O modo de amar de Sócrates é evidenciado pela intervenção de Alcibíades que, seguindo os protestos apaixonados daquele, esperou de um encontro mais íntimo, alguma acção da parte do filósofo, mas apenas conseguiu uma aproximação paternal. É com frustração que Alcibíades conta que perante a passividade do outro passou do papel de amado ao de amante, o que denuncia a substituição da expectativa pela iniciativa de que nada resultou, no plano em que supunha esse amor.
O amor é um dos grandes motivos, porventura o maior, nas grandes obras da Antiguidade Clássica. A beleza de Helena torna-a objecto de amor por parte da maior parte dos príncipes gregos e são estas paixões conflituosas que dão início aos dois grandes poemas épicos – a Odisseia e a Ilíada.
Até agora, o que para mim era mais significativo eram os mitos gregos, tal como são apresentados em várias obras escritas. Por exemplo, no mito de Eros e Psiquê, esta era uma bela virgem que se torna objecto de adoração rivalizando com Afrodite. Eros é aqui o deus, jovem e belo, filho de Afrodite, que se distrai na contemplação da jovem e se pica na própria seta, apaixonando-se por ela. Eros, ideal do amor, não pode ser visto por seres humanos e é quando Psiquê infringe o tabu de ver o corpo do deus, seu marido, que se cria a desgraça que dá lugar às provações por que terá de passar para o reaver. Por um lado, é o Amor que é vítima de si próprio e, por outro, é a alma de que Psiquê é alegoria que se deixa vencer por ele, e que para se salvar terá que sofrer.
O Amor aparece então como uma fatalidade de que o sujeito não pode ser responsabilizado. O sujeito ou ama ou não ama, pode ou não tentar realizar o seu amor, mas, dada a força deste, poucos serão os sujeitos que não se esforçarão por o realizar: caso de Eros que não vê alternativa a casar-se com a humana Psiqué, violando a ordem da mãe.
Se o amor, por um lado une, por outro, constitui uma ameaça a uniões já constituídas. Assim, as grandes histórias de amor da cultura europeia surgem do conflito entre a realização do amor e o casamento enquanto contrato que envolve valores estranhos à afeição e ao desejo. Lembremo-nos dos casos de Pedro e Inês, de Romeu e Julieta e o próprio caso de Helena e Paris de Tróia. Em todos eles, o amor corrói a ordem social do matrimónio possível.
Olho de novo para os pares à porta da escola. Por eles, a teoria da grande unificação, será realizada. Senão, observemos. Alguns ainda gravitam numa força que tem grande raio de acção, mas não é muito intensa. Outros, contudo, já passaram à fase electromagnética. Vêem-se claramente os electrões que se perdem e a busca desesperada de compensação que ora atrai, ora afasta. Há outros, mais à frente, que chegaram evidentemente ao nuclear fraco – já não perdem energias. Estas concentram-se numa espécie de misterioso cimento que faz dois moverem-se como se apenas um fossem. Adivinha-se o nuclear forte que os tornará dois igual a um, numa eventual fusão de que, pelo princípio da conservação da energia, resultarão novos seres.
Bibliografia consultada
HAWKING, Stephen W. - Breve história do tempo: do Big Bang aos buracos negros / trad. Ribeiro da Fonseca, rev. adaptação do texto e notas de José Félix Gomes da Costa, il. Ron Miller. 1ª ed..- Lisboa: Gradiva, 1988.
HÉLADE / organ. e trad. Maria Helena Monteiro da Rocha Pereira. 3" ed. - Coimbra: Inst. de Estudos Clássicos, 1971
PEREIRA, Maria Helena da Rocha - Estudos de história da cultura clássica / 4ª ed.- Lisboa: Fund. Calouste GulbenKian, 1976
PLATÃO, O banquete / trad., introd. e notas de Maria Teresa Schiappa de Azevedo.- Lisboa: Edições 70